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20.11.20

A poesia insubmissa em "Não vou mais lavar os pratos" de Cristiane Sobral




Em "Não vou mais lavar os pratos", o poema que leva o nome do livro é uma revolução, ao "abrir um livro e uma semana depois decidir: não levo mais o lixo para a lixeira". E mais na frente diz "resolvi ler o que se passa conosco / você nem me espere". A poesia não é um luxo, já dizia Audre Lorde. É na palavra que o eu-lírico reescreve a história, aprende a ler o mundo, e não aceita mais os moldes que "esperam" que pessoas negras representem. 

Os versos de Cristiane rompem esteriótipos de submissão, como em Sonho de Consumo, quando ela que determina seus desejos e condições em um relacionamento. Nos poemas sobre relacionamentos são permeados pela força de uma mulher que não aceita migalhas ou menos do que merece. Esse sentimento é muito importante, pois a questão do preterimento afetivo de mulheres negras é parte também do racismo estrutural. 

Porém, os poemas representam uma emancipação da espera por aceitação alheia, ao celebrar toda a maravilhosidade de ser quem se é, e ao invés de esperar, ela "abandona a convicta e confortável clareza das coias". Também enaltece a beleza negra e suas raízes, em poemas como "Escova Progessiva?", "Pixaim Elétrico" e "Algodão Black power". 

O livro é repleto de poemas de coragem e força, mas a poeta não esconde suas dores, fala de solidão, medos e aponta para um caminho de Resiliência e esperança guiado por "poemas faróis". 

Comprei esse livro diretamente com Cristiane Sobral para presentear minha amiga Amanda Benevies (veio a pandêmia e ainda não consegui entregar o presente). Na ocasião Cristiane deu uma aula de abertura de um curso para mulheres negras. Essa aula era aberta ao público, não só as alunas do curso e como já admirava o trabalho de Cristiane pela internet fui prestigiá-la presencialmente.

Não pude deixar de perceber que eu era uma das poucas mulheres brancas na sala e meu namorado o único homem branco. Em uma sociedade que elimina corpos negros diariamente, nós pessoas brancas, estamos tão acostumados a sermos protagonistas o tempo todo, a termos a voz principal em todo lugar, a sermos nós os homenageados ano após ano em premiações, e a tudo isso ser normalizado, que a gente esquece que não, não somos o centro do mundo.

Foi importante ver um lugar em que mulheres negras pudessem encontrar força, afeto e amaparo e é esse lugar que se ergue na poesia de Cristiane Sobral. 

19.11.20

Narrativa Fisgante: Fique Comigo (Ayòbámi Adébáyò)

Fique comigo foi a leitura que mais me prendeu no ano, fazia tempo que eu não me sentia tão dentro de uma história ao ponto de realmente sofrer com personagens fictícios e querer bater em outros se eu encontrasse na rua. Por um lado, senti um alívio ao pensar ser tudo ficção, porque a vida Yéjide é plot twist atrás de plot twist.

Esse é o livro de estréia da nigeriana Ayòbámi Adébáyò e conta a história de Yéjide e Akin, um casal que dediciu ser monôgamico dentro de uma sociedade poligâmica e que não tiveram nenhum filho nos 3 anos de casado dentro de uma cultura que centraliza a função da mulher na maternidade. O fato de Yéjide não ter um filho praticamente anula a utilidade dela no casamento o que faz com que Akin o faça case com uma segunda esposa, mesmo tendo decidido pela monogamia com Yéjide. Essa nova situação chega a Yéjide inesperadamente o que desencadeia uma série de reviravoltas. 


Além disso, é de uma experiência riquíssima termos contato com literaturas africanas, que nos mostram outras formas de cultura ao mesmo tempo que temos uma geraçõa de escritores fenomenais que relacionam tradição e modernidade, com críticas socio-políticas em suas narrativas. 

Já fiz uma resenha no canal sobre o livro, mas vim só aqui deixar minha recomendação para ir lá conferir o vídeo. 




Se você estiver com alguma ressaca literária ou sem conseguir se prender a nenhum livro, esse com certeza não vai fazer você querer parar de ler. 


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Se meu conteúdo é relevante para você, pense em me apoiar financeiramente pelo APOIA.SE: https://apoia.se/asvirgulas

16.11.20

As cavernas que habitam mulheres ferinas: sobre Um Buraco com meu nome, de Jarid Arraes




Tem livros que sinto que vão me cortar fundo, então eu preparo a carne por um tempo, fico ali observando de longe por alguns meses ou anos até, apesar de saber que nenhuma preparação suaviza o contato com poemas que tomo nas mãos como vulcões de coisas que eu mesma guardava e não sabia. 

Assim que vemos Um Buraco com Meu nome de longe, o livro nos encara como uma fera, a capa é preta ao fundo, com rabiscos cinzas preenchendo-a quase toda, e o título em vermelho sangue e letras grossas, assim: UM BURACO COM MEU NOME.

Esse é o primeiro livro em poesia da escritora cearense Jarid Arraes, um nome já reconhecido na literatura contemporânea brasileira por seus contos e cordéis. É com ele que Jarid, funda o selo da editora Jandaíra, Ferina, dedicado à publicação de mulheres. 

Um buraco como uma caverna onde habitam mulheres ferinas, foi essa a imagem que me veio ao engolir o livro, dedicado "aos que nem sempre encontram matilha". Dividido em quatro partes: Selvageria; fera; corpo aberto e caverna a obra também contém ilustrações da própria autora em desenhos que lembram pinturas rupestres. Me trouxe a sensação também de uma mulher presa, desenhando e escrevendo versos sobre sua solidão. 

A primeira e segunda parte vão trazer poemas de tom insurgente, tecendo sobre o corpo da mulher, a cidade, solidão, a loucura e as relações entre gêneros. 

A terceira começa com um poema inicialmente convidativo: "venha desenhar o mapa do meu corpo aberto", mas logo mostra que para conhecer o "meu" corpo, é precis admirar as vísceras também. Um corpo em que "paredes desabam" e se busca as linhas da loucura. Os versos vão investigar cada fio de cabelo, peso e tamanho desse corpo-fera-aberto, também passando por questões de sua identidade como mulher negra.

O livro termina com o poema Chama. trazendo o fogo como um ímpeto de regeneração. Uma chama quem vem pelo contato por meio da escrita, da palavra - talvez.

Às selvagens, às loucas, às não amáveis, Um Buraco com meu Nome é uma pergunta, que nos torna selvagens são as interrogações que nunca conseguiram, por mais de séculos que tentaram, nos calar. 

Os poemas-canções de Prelúdio in Blue, de Rafaella Britto




Sendo esse um livro de poemas, talvez eu não pudesse imaginar personagens, cheiros, cenários e sons, elementos fundamentais das narrativas. Prelúdio in Blue, por outro lado, rompe essa dicotomia e explode de suas páginas uma diversidade de personas, aromas, e ambientações, todos envoltos por uma névoa em azul, azul que não é frio, mas morno, como um abrigo. 

O livro de estréia da paulistana Rafaella Britto, publicado em 2020 pela Editora Penalux, é a uma das mais belas homenagens que já vi ao casamento de séculos da música com a poesia, nesse caso, mais precisamente à música de raízes negras. Os versos de Rafaella irrompem em ritmo de samba, blues & jazz, saindo rodopiante das mãoas da poeta, prontos para invadirem à noite. 

Because the night belongs to lovers, diz a música de Patti Smith, e é assim que sinto também os poemas de Prelúdio in Blue, seres pertencentes à noite, e nascidos de um profundo amor. 

"Blue, songs are like tattoo" são os primeiros versos da famosa música Blue da cantora Joni Mitchel, que está na epígrafe do livro. É assim que Rafaella leva essa música e tantas outras que a inspiraram na criação de seus poemas como tatuagem, como parte de sua pele. 

Inclusive, ela afirma em uma entrevista que o livro é uma busca por sua própria identidade como mulher negra, e nesse movimento de elevar grandes artistas negros da música, a escritora constrói em seus poemas-canções um percurso de memória e descoberta. 

Além da música, o cinema é também uma arte bastante referenciada no livro. Rafaella é cofundadora e editora da revista digital Cine Suffragette, dedicada às mulheres e minorias no cinema e constrói cenas que revisitam atmosferas cinematográficas como em Amado Mío: 

"Ama-me para sempre

na ilusão de um velho cinema"

Prelúdio in Blue é um mosaíco poético que chega para o leitor como a descoberta de uma caixa de fotografias antigas, revelando a contrução de uma vida que emana Arte, uma leitura inspiradora que nos faz pensar quanto de nós é constitúido por belos momentos em que alguém decidiu criar algo e colocar no mundo


10.11.20

Raízes do Meu Ser - Telma Pacheco Tãmba Tremembé





        A nossa história de vida não começa com a gente, começa antes, é essa a primeira lição que aprendo com Raízes do Meu Ser - de Telma Pacheco Tãmba Tremembé.

Existem infinitas formas de definir a importância de um livro. E eu posso dizer, sem pestanejar, que esse é um dos livros mais importantes da minha estante tamanho é seu poder de resgate histórico, ao confrontar séculos de apagamento dos povos originários do nosso país. 

Telma é cearense, artesã e militante pela causa indígena. Esse é seu livro de estreia, "resultado de dois anos e meio de busca por minhas raízes" ela afirma na quarta capa do livro. Aqui, ela conta sua história começando em 1800 com sua escancha-avó e continua com sua avó materna, sua mãe, seu encontro como pertencente ao povo Tremembé e termina falando de sua filha. É partir de sua história que Telma quer chegar a verdadeira História e ainda faz o pedido: 


"seja indígena a partir de agora, até pelo menos terminar esse livro.". 


A escolha por escrever uma autobiografia como um coletivo é algo emocionante neste livro. Logo no primeiro capítulo ela anuncia contar "a verdadeira história do Brasil", desmontando as imagens que temos da chegada dos portugueses tão enraizadas em nossa memória pelos livros de História da infância. 

"Éramos nômades, andarilhos, para não sugar aquele espaço íamos para os arredores, até a natureza se refazer".

Pensar que essa liberdade foi transformada em exploração pelos colonizadores, pensar que os povos originários não se viam como donos da terra, mas cohabitantes dela, e hoje precisam lutar por um espaço no qual eles cuidavam e cuidam muito melhor que, nós, brancos.

Ao longo do livro, Telma conta diversas estórias de seus familiares e seus costumes com a consciência de que com isso possibilita a identificação pessoal com tantas outras que continuam resistindo e dando continuidade à cultural original.

Telma também denúncia os preconceitos que sofreu na infância e como ela não conseguiu ser registrada na infância com seu nome indígena, ela relembra uma frase do Pajé Luiz Caboco:

"cortaram nossos galhos, mas esqueceram de cortar nossas raízes".

É assim que Telma nos faz pensar nas nossas raízes e esse resgate parte de uma consciência pessoal e social. Telma teve amnésia e as vezes tem lapsos de memória, que ela pensa estar relacionado ao próprio apagamento de seu povo, mas que encontrou na escrita desse livro uma forma de lutar contra isso. 


2.10.20

Chapeuzinho Esfarrapado e outros contos feministas do folclore mundial (Org. Ethel Johnston Phelps)




E se os contos de fadas mais famosos do mundo fossem contos feministas? Como as coisas seriam?

Outubro chegando, mês das crianças e eu vim dar uma dica de um livro infanto-juvenil sensacional.

Comprei esse livro porque estava (e estou) com a ideia de criar uma peça infantil voltada pra discussões feministas e o livro caiu como uma luva! 

Como o título já diz,esta é uma coletânea de contos folclóricos de toda parte do mundo, que fogem de esteriótipos de gênero perpetuados nos contos tradicionais que ouvimos quando criança, e ainda contamos até hoje. 

Em nenhum momento a intenção é cancelar os Irmãos Grimm ou Charles Perrault (rsrs, tem que avisar né); mas sim, trazer histórias que despertem sentimentos de valentia, esperteza, coragem, humor nas meninas e adolescentes. Que façam meninos e rapazes também entenderem o que é respeito e amor, de verdade!

As personagens femininas do livro não estão à espera do príncipe encantado, não são marcantes pela sua extraordinária beleza e não se submetem as regras impostas. São meninas e mulheres que desbravam o mundo, vão em busca de aventuras e lutam em nome de seus próprios ideais e valores. 

Destaco alguns pontos mais legais do livro:

1. São contos do mundo todo: aqui podemos conhecer histórias tradicionais sudanezas, de povos nativos da América, orientais, africanas, entre outros. O que nos coloca em contato com uma diversidade de saberes. E são contos tradicionais, o que nos faz pensar do que porquê não terem ganhado tanta fama como A Bela Adormecidade, entre outros.

2. As mulheres idosas não são bruxas más e recalcadas pela juventude das mais novas: a expressão "conto da carochinha" (sinônimo de mulher mais velha), ganha um novo significado. Aqui, a experiência de mulheres mais velhas são muitas vezes a grande chave para o final feliz, são personagens dotadas de humor, esperteza e sabedoria ancestral. Seus saberes naturais e místicos salvam outros personagens de enrascadas ao invés de serem colocados como algo para fazer o mal.

3. O casamento não é um fim em si mesmo: muitos dos contos terminam sim em casamento, mas nunca é sobre uma princesa que espera passiva o príncipe; ocorre por que ambas partes foram ativas em seus destinos e decidem se unir. Em muitas histórias são as princesas ou camponesas que salvam os homens. E algumas em que eles já são casados e é pela esperteza da mulher que o casal sai de algum conflito. Mas não no sentido de que a mulher fica lá sempre pra salvar o homem, e sim no sentido de união do casal. Em um conto, as mulheres até deixam os seus maridos para viverem sozinhas em outro lugar sem eles!

4. O livro dessacraliza a tradição: na introdução a organizadora afirma que alterou dos contos elementos de violência ou crueldade, assim como ela retirou uma ênfase desnecessária à beleza que não serviam essencialmente para a história. Achei isso muito interessante, até porque todos esses contos de fadas que conhecemos hoje são também adaptações. Nenhum é totalmente "autêntico". Então porque manter para crianças valores que vão perpetuar machismo, violência e preconceitos? 

Por fim, apesar de serem contos de fadas, o livro não quer ser uma fada sensata (rs) e a leitura é sempre aberta para discordâncias. Mas dentro do que se propõe, achei uma iniciativa inovadora e que merece muito destaque! Histórias importam e precisamos pra ontem contar histórias para nossas crianças que revolucionem a visão de mundo estabelecida hoje. 

10.9.20

Impressões de Leitura: Raul (HQ) - Alexandre de Maio




"Chefe, nessa vida a gente tem que escolher. Fui pra cima e agora não dá mais pra voltar"

Quando decidi comprar essa HQ eu não sabia nada do autor ou da história, a motivação era apenas aproveitar o combo promocional da Editora Elefante e fui totalmente supreendida por uma história digna de filme, conduzida com maestria pelos traços de Alexandre de Maio. 

A HQ conta um pouco da vida de Rafa, um cara que cresceu na Baixada Glicério, em São Paulo,  tendo contado com o crime desde criança, o tio dava golpes de desvio de mercadoria. Pré-adolescente, ele começou a se envolver em furtos e assaltos, quase sendo morto, resolveu depois se tornar "Raul", uma gíria para pessoas que dão golpes em cartão de crédito. Mas o sonho mesmo de Rafa era ser Rapper...

Não vou contar a história toda pra te deixar com a curiosidade de como vai se desenrolar. Eu achei muito interessante a abordagem da HQ de contar essa hitória pela perspectiva de Rafa, e assim somos levados pelo personagem a conhecer uma rotina que só temos acesso de modo muito sensacionalista por programas policiais. 

Em nenhum momento se tenta mascarar que Rafa comete crimes, mas também traz um debate mais profundo quando ele conta de seus sonhos e quais os motivos que o levaram a escolher esse caminho. O final causa impacto pela sinceridade quando Rafa diz que continua no crime por dinheiro, que se acostumou a tê-lo.   

O traço de Alexandre de Maio remete a filmes noir, e ao estilo de Sin City, e a narrativa é conduzida de forma dinâmica em que Rafa explica como funciona as diversas táticas usadas no esquema de ser "Raul" misturando com fatos de sua vida pessoal. 

Não tenho o costume de ler HQ, e gostei bastante da leitura. E aí, você já sabia o que era "Raul"? Conhece algum HQ noir?  

12.8.20

Lidos de Julho



Em Julho eu tentei participar da maratona Pretatona organizada pelo perfil Clã das Pretas, mas também estava com outras leituras em andamento e não consegui cumprir todas as categorias. Também finalizei a leitura coletiva de A Rainha do Ignoto com a Juliana do perfil @blankgarden e a Márcia do @marcia.dch. Também li Irmã Outsider para discutir com o grupo @leiafeministas que foi a melhor leitura do mês e uma das melhores do ano. Outro livro marcante do mês foi Tornar-se Negro que eu terminei na primeira semana do Julho, pois já estava lendo desde Junho. Comecei a ler com um amigo e debatemos rapidamente pelo whatsapp, é uma leitura dolorosa e deve ser mais ainda para pessoas negras, mas foi muito importante entender um pouco da relação ente psicologia e racismo. 

Lista Completa:

  1. Tornar-se negro
  2. A Rainha do Ignoto
  3. Do Teatro que Temos (incompleto)
  4. Raul (HQ)
  5. Prelúdio in Blue
  6. Roube como um artista
  7. Irmã Outsider


5.8.20

Amoras - Emicida (RESENHA)

Amoras é um livro voltado para o público infantil, escrito pelo rapper Emicida, com ilustrações de Aldo Fabrini, lançado em 2018 pelo selo Companhia das Letrinhas.

Esta é uma leitura que encanta crianças e emociona adultos, ao mostrar a importância de criarmos um mundo em que crianças negras possam crescer valorizando quem são.

Num passeio pelo pomar, Emicida explica a sua filha sobre as amoras e diz "as pretinhas são as melhores que há". Com os olhos brilhando ela conclui "que bom, porque eu sou pretinha também!".

Ao ver alegria nos olhos da filha, Emicida resgata a história de ativistas negros como Martin Luther King Jr. e o líder Zumbi, emocionado pela luta destes sabendo que "nada foi em vão.".

Esse livro é sobre uma menina que reconhece sua negritude pela beleza das amoras e nos dá a esperança de podermos construir um mundo antirracista com mais experiências de beleza e reconhecimento afetivo para as crianças negras. Fico imaginando se quantos adultos hoje não gostariam de ter lido um livro desses quando crianças ou vivido uma experiência de vamlorização de si na infância. 

Numa sociedade em que crianças se descobrem negras pela dor da discriminação, Emicida nos propõe uma reflexão: e se crianças negras pudessem se reconhecer negras pela beleza de sua cor, dos seus cabelos, pelo amor?

Ao invés do bombardeio de imagens de crianças brancas na mídia, exaltadas como padrão de beleza (não só externa, mas ditas com "angelicais", e outros adjetivos de "superioridade"), é na natureza que Emicida encontra o paralelo para criar um mundo que valorize e empodere os crianças pretas. E o mais lindo é que é a própria filha dele que chega a essa conclusão ,ao que ele diz: "Me esforço para ensinar / mas foi com elas que aprendi".

O texto de Emicida é pura poesia, uma música que acalenta o coração. 


28.7.20

Bom dia, tristeza (Françoise Sagan)


Bom dia, Tristeza foi lançado em 1954, quando Françoise Sagan tinha 18 anos e se tornou um bestseller. Sagan impactou leitores por trazer de forma direta e crua personagens da burguesia parisiense envoltos no tédio existencialista. 

A personagem central é Cécile, uma jovem de 17 anos, orfá. Seu pai, Raymond coleciona namoros, os quais Cécile já está acostumada com a efemeridade. Ambos estão passando as férias no litoral, enquanto Cécile está prestes a ser reprovada na escola, mas não se importa com isso (nem o pai). Todo esse clima de aparente leveza muda com a chegada de Anne, uma mulher bem mais velha, amiga da mãe de Cécile. Seu pai deseja se casar com Anne o que para Cécile "ameaça" a intimidade e liberdade que os dois têm.

O enredo da narrativa não é o forte do livro. Os personagens vivem num mundo de excessos e frivolidade, ao mesmo tempo que se cansam de tudo rapidamente, pois são incapazes de mergulhar com profundidade nas tessituras da vida. É o estilo íntimo e simples de Sagan que prende o leitor.

O tom existencialista é a grande marca do romance, toda a busca de Cécile é por sentir algo além do vazio. Acostumados a terem tudo sob controle, pai e filha são confrotados com imprevisibilidade da vida vendo as consequências de suas ações. 

Escrito num contexto pós-guerra, e longe de ser um livro com alguma lição de moral, "Bom dia, tristeza" reflete a juventudade de uma época que dança passos entre a liberdade e a melancolia iludidos na ideia de uma felicidade fácil e volúvel.

Acredito que para os leitores de hoje não cause tanto impacto como na época e eu mesma me senti um pouco decepcionada com a leitura. Mas depois de algumas reflexões compreendo os pontos positivos da obra e recomendo para quem esteja buscando uma leitura mais leve.







21.7.20

Um Jogo bastante perigoso - Adília Lopes

Guimarães Rosa disse que o que a vida quer da gente é coragem, e a poesia da portuguesa Adília Lopes mostra que junto de coragem é preciso imaginação.  

Adília Lopes é o pseudônimo de Maria José da Silva Fidalgo de Oliveira. Nasceu em 1960, em Lisboa, e é autora de mais de vinte livros de poesia. Entrou na faculdade de Letras em 1983 e dois anos depois lançou este livro, o primeiro. Incrível como um título pode descrever tão bem o que é fazer poesia: um jogo bastante perigoso. É nessa atmosfera metalinguística que Adília sustenta sua cinuca. 

O que impressiona e me fisga tanto em Adília é ela me tirar do eixo com sua criatividade de construir versos que são observações esquisitas sobre o cotidiano, mas também misturar referências clássicas. Adília chega em mim como um bilhete escondido num livro antigo, algo que me faz muito feliz e se tranforma num momento precioso. 

O primeiro poema é dedicado a personagem de A Redoma de Vidro, Esther Greendwood e discorre reflexões do eu lírico durante um banho quente, um poema que eu leio e releio tentanto encontrar o que Adília quis mesmo dizer com ele ao mesmo tempo que sinto esse afago de um banho quente. "nunca me sinto tão eu mesma/como quando estou dentro de um banho quente". 

Em algumas vezes o eu lírico de Adília parece estar sempre fazendo algo meio errado ou perigoso como novamente nos sugere o título, e é curiossímo como aqui no Ceará usamos a expressão "fazer arte", para nos referir a fazer algo perigoso, uma criança "arteira" é uma criança que se mete em confusões cotidianas.

"Eu fazia a correr e às escondidas/ as coisas mais inocentes / por isso fui punida". Em "O Gabinete de Penitência", Adília pode talvez estar se referindo a sua experiência esquisofrênica, enquanto descreve a ação de recortar bonequinhas num papel dobrado e ao abrir o papel a menina cortada se transforma em duas. 

Os poemas em geral misturam essas atividades infantis como "lamber feridas", recortar papeis, comer papinha, brincar com fogo, ir a parques de diversões e outras absolutamente banais como polir as unhas ao passo que afirma que nada na vida dela é simples e entrecruza acontecimentos que podemos julgar como biográficos, o próprio fazer poético e diálogos com outras obras e escritores.  

Apesar do jogo, ela traz uma sinceridade tão crua, sem disfarces sobre suas dores que lembra também à maneira honesta que as crianças têm de falar de seus desapontamentos. 

"O que me custou foi tudo ter acabado como tinha começado / como se nada tivesse passado / durante / ora o que passou durante / ainda hoje me incomoda / e portanto deve ter acontecido. "

Para Adília Lopes a poesia é uma atividade de sobrevivência, os poemas são "moinhos que andam ao contrário" ou peixes se debatendo em suas mãos, em que "ou morremos os dois / ou nos salvamos os dois". Novamente me lembra Guimarães Rosa quando diz "viver é muito perigoso", para Adília escrever também o é, e não há separação entre as duas coisas. 



24.6.20

Ela Disse - Jodi Kantor e Megan Twohey


"Ela Disse - os bastidores da reportagem que impulsionou o #metoo" vai relatar todo o processo das jornalistas Jodi e Megan para publicarem uma matéria expondo décadas de assédio sexual e a compra do silêncio das vítimas por meio de acordos de confidencialidade cometidos pelo produtor de cinema Harvey Weinstein. 

Ao relatar todo o processo investigativo, o livro levanta diversas questões envolvendo a violência sexual contra mulheres trazendo como plano de fundo a indústria cinematográfica de Hollywood, mas também abrindo espaço para pensarmos na total falta de segurança que ainda há para mulheres nos diversos ambientes de trabalho. 

Como um fio de um novelo, a história começa por Harvey e seus acordos de silenciamento, mas desenrola um emaranhado de relatos da real situação do assédio sexual hoje. Engasgadas com a sensação de que nada mudou durante décadas de luta feminista, percebemos o complô entre criminosos sexuais e um sistema judiciário que não entende o que uma vítima de violência sexual passa, com base em leis que não nos protegem. 

Também traz reflexões sobre a real eficácia do engajamento virtual e o que pode ser de fato mudado quando há um movimento como o #metoo. Faço algumas críticas ao tom jornalístico meio distanciado e por em nenhum momento usarem a palavra machismo e patriarcado como a real origem de toda essa violência. 

O livro acaba deixando a desejar ao não propôr uma crítica que faça os leitores compreenderem que não se trata de um "comportamento predatório" que surge do nada, mas que é amparado pelo machismo e sem a destruição do pensamento patriarcal não estaremos livres nunca e por isso precisamos do feminismo, mas promove um debate sobre o quanto precisamos acreditar numas nas outras e da força dessa união para quebramos essas correntes de silêncio.

7.6.20

Reflexos num Olho Dourado - Carson Mccullers



Carson é uma escritora que infelizmente ainda tem pouca visibilidade no Brasil apesar de sua qualidade literária, contemporânea de Faulkner, Capote e Tenesse Williams, a estadunidense tem um estilo original e foi percursora em trazer temas polêmicos para a literatura. 

Neste curto romance reconhecemos o toque característico de Carson: personagens que destoam de uma normalidade social, incomunicáveis e uma tensão silenciosa entre eles prestes a quebrar a falsa calmaria de suas vidas.

Em Reflexos num Olho Dourado, temos como cenário principal um batalhão do exército e a casa de um dos capitães desse quartel, o oficial Penderteon, um homem gay reprimido, é casado com Leonora, uma mulher muio atraente, mas descrita por Carson como tendo um algum "atraso mental". Logo de cara, Carson revela que aconteceu um crime envolvendo os personagens principais, sem obviamente dizer por quem, quais as vítimas ou como se desenrolou isso. 

Aos poucos vamos conhecendo as figuras e de que maneira elas vão se relacionando e revelando seus segredos.  Todos os personagens sustentam no limite de seus nervos uma vida aparentemente comum, cada um reprimindo desejos sexuais. Essa repressão é o fio condutor da narrativa e o que liga essas estranhas criaturas, que como lemos na orelha desta edição, parecem metade humanos, metade animais, tomando atitudes extremas e violentas, desprovidos de racionalidade, sufocados pela normatividade imposta. 

Eu adoro o estilo inconfundível de Carson narrar as coisas, ela consegue ser poética e ao mesmo tempo jogar na sua cara acontecimentos chocantes sem a menor preparação, te deixando meio desnorteado: ela faz um corte e o sangue só é espirrado na sua cara sem que você possa se defender. 

Bom salientar que a história se passa num EUA sulista, nos anos 30 e os personagens são bem racistas. Mas por outras obras de Carson em que ela trouxe personagens negros ao centro da narrativa, eu vejo que nesse se trata da caracterização dos personagens, inclusive como crítica a essa sociedade com resquícios escravocratas, pois ela zomba desses personagens, ao mesmo tempo que disseca os podres de uma elite neurótica e limitada por preconceitos explodindo tudo isso em violência e autodestruição. 

29.5.20

Chamadas Telefônicas - Roberto Bolaño

Saio mais uma vez apaixonada e com raiva do Bolaño ao mesmo tempo. Amo sua sensibilidade para falar de arte, da literatura e esse desespero latino americano meio Belchior de ser poeta e não ter onde cair morto. Mas como muitas de suas personagens, dá vontade de abandoná-lo depois de ligação estranha quando ele começa a falar de mulheres. O incomodo surge muitas vezes, porque a visão de seus personagens masculinos das mulheres é sempre com algum envolvimento sexual e ele parece sugerir a ideia - bem masculina -  de que uma mulher livre, aventureira e fora do convencional é aquela que transa com todo mundo. Bolaño na sua limitação machista (ui, não pode chamar mais nenhum autor que é bom de machista né? Se for latino-americano piorou) - sim gente, ele é machista, você é machista, todos os homens são, vamo parar de mimimi ta (risos), parece não enxergar que as amarras sociais que prendem uma mulher não se rompem com a quantidade de parceiros que ela faz amor (como ele diz) e abandona. Talvez isso revele também a tristeza dessas relações e não uma libertação. Porque no fundo elas "sabem" que não estão tão livres como pensam. Em alguns momentos as mulheres de Bolaño têm um lampejo de lucidez e apenas vão embora, isso acho interessante. Os contos são literalmente repleto de Chamadas Telefônicas conclusivas nos silêncios e no que não é dito, na aparente falta de objetivo dessas ligações. É das relações mais catastróficas, sem futuro, tristes ou inusitadas que o chileno resolve tirar a matéria para os seus contos. Os personagens se conhecem e se despedem sem maiores mistérios, as amizades começam e acabam com a naturalidade da vida, sem drama, sem explicações, apenas porque é assim "nunca mais o/a vi", é uma frase dita com frequência, ou "soube que morreu meses depois", também é outra. As coisas não se sustentam muito se tratando de seres tão insustentáveis consigo mesmos. Sentimos certa melancolia por tudo isso, mas uma melancolia morna.

28.5.20

Cartas a um jovem poeta de Rilke e a pressa juvenil



Inspirada na minha última sessão de terapia e no vídeo da Tarcila do VráTatá

A ansiedade juvenil de saber "como fazer algo", "como ser bom rápido" e o desespero em frente a vida acontecendo com todos os seus percalços é uma das milhares de questões que refletimos ao ler as 10 cartas presentes em Cartas a um jovem Poeta. 
O ciclo da vida humana que vai de "ter muita pressa - desenvolver ansiedade - e em algum momento entender que tanta pressa é um erro" parece mais latente nos nossos dias, eu sou um reflexo disso. 

Vivemos em um mundo cheio de 'dicas' e postagens mastigadas de "como fazer", em que as pessoas pedem conselhos rápidos o tempo todo (às vezes sem nem ler ou ouvir o que acabamos de dizer). Perderam a curiosidade de descobrir coisas por si mesmas, de criar coisas e caminhos por si mesmas, e enfrentamos a sensação de viver por uma sonda gastrointestinal: não queremos mastigar e esperar todo o processo digestivo do organismo, só queremos injetar a vida no nosso estômago, e que de preferência a gente defeque logo para cumprir o protocolo intestinal.

Não temos paciência para ver algum conteúdo com mais de 10 minutos (vi um vídeo com dicas de como começar um canal em que a pessoa dizia para não fazer vídeos com mais de 10 porque as pessoas não iriam assistir), temos a opção de "aumentar a velocidade de um vídeo ou um podcast" para ouvir alguém falando porque de alguma forma aquela pessoa pode estar falando "lento demais", quando é só a... bem fala humana... aumentamos essa velocidade para chegar logo a o final do vídeo e dizer "ufa, pronto, peguei a dica". Nem tampouco nos sobra tempo ou interessem em ler um texto maior que um tweet, e os stories são de 16 segundos e vídeos no igtv de 10 e lives de 1h cansam demais (sim, cansam mesmo, confesso).

Com tudo isso, a leitura desse livro de Rilke se faz essencial e se torna atemporal. Se somos feitos da matéria que são feitas os sonhos, como diz Fernando Pessoa e se O Amor é difícil como nomeou a Tarcila no seu último vídeo como a gente faz o que é difícil ser precioso também? 

Como a gente faz o tempo ser precioso? Como tornamos preciosos cada pedacinho dessa matéria de que somos e que foi construída ao longo de muitos muitos segundos que se passaram e que cada um significa um movimento dessa dança da vida.

E se a gente entender a vida mais como uma dança, do que uma escada reta, ou um caminho reto, então... temos o palco inteiro para rodar, ir pra frente e pra trás, pular, rastejar no chão, ficar parada...

Talvez não seja sobre um passo adiante, porque... se pensamos em que é sempre um pé depois do outro... é como se já soubéssemos exatamente como vai ser o fim, - e disso só sabemos que há a morte - será por isso a pressa? Desejamos logo morrer, então?... Onde está o prazer em construir e criar cada passo, em criar a luz no fim do túnel, em criar o que virá, degustando o presente....

Hoje eu falei para minha terapeuta que eu estava sentindo pressa em "melhorar" na terapia, encarei a terapia como um desafio em que eu tinha que comprovar um avanço a cada semana e na minha cabeça... se esse avanço não acontecia, se eu achava que errava d.e novo, se eu fazia algo que me desagradava, era como se estivesse falhando, perdendo, fracassando. Criei uma relação de que tudo precisava ter um resulto... rápido e positivo. Quando o processo de autoconhecimento é tudo, menos rápido e nem sempre indolor

9.5.20

Mulheres na Luta - Marta Breen e Jenny Jordahl (parte 1)


Mulheres na Luta é uma HQ que eu recomendaria para todo mundo que quiser um primeiro contato com a história da luta feminista no contexto europeu e estadunidense e entender um pouco das chamadas "ondas do feminismo", pois traz todo esse conteúdo de forma bastante divertida e acessível. 

Mas hoje faço algumas considerações. De início a HQ coloca as mulheres brancas no mesmo patamar de escravizados e crianças, ela diz que esses três grupos não tinham os mesmos direitos que os homens.

Hoje observo isso com mais atenção, pois, pela visão da autora, as mulheres negras escravizadas estariam na mesma posição de mulheres brancas: sem direito a propriedade em seu nome, impossibilitadas de ganhar seu próprio dinheiro e de votar. 

Porém, acho que ter colocado ambas no mesmo patamar de desigualdade apaga o processo de escravidão, em que mulheres brancas, mesmo com menos direitos que homens (brancos), eram vistas socialmente acima dos escravizados, inclusive usando esse degrau um pouco superior para junto ao seus maridos perpetuarem a escravidão. 

Claro que existiu no meio disso muitas mulheres brancas abolicionistas e que se recusaram a compactuar com o processo da escravatura. Mas é importante entender que infelizmente não partimos do mesmo local, pois mulheres e crianças brancas ainda eram vistas numa sociedade escravocrata como superiores a pessoas negras. Enquanto ela diz que "mulheres" não podiam fazer faculdade, as mulheres negras estavam sonhando em acabar com a condição de serem propriedade tanto das mulheres brancas como dos homens brancos. 

Falando especificadamente da HQ, quando começamos a ler sobre "a história da opressão das mulheres", é apontado questões como o casamento obrigatório, o voto, a falta de educação formal, etc. E o texto é acompanhado de ilustrações de mulheres brancas, claro, pois essas questões eram relacionadas a nós, já que para mulheres negras as coisas eram um poucos diferentes, e piores.

Mesmo impossibilitadas de irem para a faculdade, muitas mulheres brancas podiam aprender a ler e escrever, em casa, enquanto para mulheres negras na mesma época isso era totalmente proibido.

E para se casarem, mulheres negras até tinha a "liberdade" de escolher seus parceiros, mas precisavam pedir permissão aos "senhores e senhoras" e muitas vezes isso era negado. Era na verdade uma falsa liberdade, pois a mulher escravizada "pertencia" ao "senhor de escravos", mesmo que fosse "casada" isso não ia impedir os estupros que ocorriam por parte dos homens brancos.  Sem contar as situações em que tinham seus filhos tirados ao serem vendidos para outras fazendas. 

Todas essas questões poderiam ter sido abordadas na HQ se a ideia era falar como era o retrato de opressão da mulher no século XIX, mas parece haver uma tendência a começar falando como a sociedade é/era com as mulheres brancas. 

Isso significa que é errado falar da condição de mulheres brancas? Que elas não sofriam? Que não era aprisionadas? Que não eram livres também, em certo sentido? Não, não e não. É importante que entendamos as condições de vida das mulheres ao longo dos anos para refletirmos sobre a origem da nossa opressão e valorizarmos as conquistas de hoje. É importante falar como TODAS as mulheres sofreram e sofrem opressões diferentes ao longo do tempo. Mas também observando o uso do termo "mulheres" como universal, principalmente no contexto de raça. 

29.4.20

[Resenha] Harry Potter e o Cálice de Fogo - J.K. Rowlling

Não lembro minhas sensações quando li essa série a primeira vez, há mais de 10 anos. Mas hoje ela ainda se revela uma bela obra, que com certeza eu indicaria para qualquer um ler em qualquer tempo. 

Sinceramente, a emoção que ele traz é atemporal.

No começo desse 4º eu fiquei bem impaciente e achei um pouco chato, não tinha sentido isso nos outros 3, mas nesse, os diálogos eram arrastados, as coisas demoravam a "acontecer" e muitas cenas eram descritivas demais e pareciam não acrescentar nada à história.

Mas assim que o cenário mudou para Hogwarts e aconteceu o que você sabe que acontece com Harry rsrs ai eu não largava mais de ler <3

Nos capítulos finais do livro temos uma mudança de atmosfera diferente dos outros livros, as coisas ficam mais densas e tristes, não há um fechamento do tipo "ufa, passou mais uma aventura" e sim "eita pau, o que vai acontecer agora?", ousaria dizer até mais adultas mesmo. Ler esse livro quando adolescente é lidar com sentimentos que muitas vezes não sabemos lidar: a morte, a ausência de pessoas queridas, a injustiça, a crueldade, entre muitas coisas.


Em O Cálice de Fogo, J.K. consegue misturar diversos sentimentos que passam por nós aos 14 anos, bem como temas mais sérios, e inclusive, semelhantes ao que estamos passando, como o descaso das autoridades diante a um grande perigo.


Não estou esticando a baladeira, mas a reação de Fudge no final do livro é absolutamente revoltante, e por um momento me lembrou a estupidez de Bolsonaro. Fudge quer negar que falhou, que as pessoas estão em perigo, apegado e cego de amor ao poder, como Dumbledore diz, não se importa que inocentes morreram e vão morrer devido à sua cegueira. 


Mas ÓBVIO, com as devidas proporções, não estamos num mundo mágico, não temos Harry Potter, nem Dumbledore, nem as coisas irão ser explicadas com uma profecia, ou tão claramente como nos livros. Tudo isso é fantasia, ficção. e nós, estamos na realidade né? Mas, termino esse livro com a certeza de que J.K. não teria criado uma série tão mágica se não fosse uma observadora atenta do mundo real.

24.4.20

[Resenha] Morango e Chocolate - Aurélia Aurita


Morango e Chocolate é em poucas palavras uma HQ safada e fofinha :D
Narra as primeiras semanas da relação de Fréderic e Aurélia. .
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Aurélia vai até o Japão para uma conferência de quadrinhos e também para encontrar Fréderic, que havia conhecido na França. A hq se diferencia por retratar de forma divertida e direta as descobertas sexuais que ocorrem entre eles ao mesmo tempo que vão também consolidando a relação. .
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Apesar das imagens eróticas que Aurélia desenha sem tabu, o traço meio arredondado e as expressões lembram um pouco feições de anime e por isso que eu disse que é uma safadeza fofinha. Muito legal é como Aurélia transita entre situações sexuais para coisas engraçadas e reais que raras vezes vemos na lliteratura, como o sexo quando se está menstruada e fetiches sexuais de querer se ver no espelho entre outros que acharíamos "nojento", mas o jeito que ela coloca nos faz pensar como tudo isso deveria ser falado de forma mais natural entre adultos. .
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Aurélia também traz a perceção de uma mulher, algo inovador porque como sabemos, raramente lemos literatura/quadrinho erótico do ponto de vista feminino, fala de todos os desejos, fetiches e inseguranças que poucas vezes são ditos. Acho que seria um ótimo presente pra alguns homens que nunca perguntam ou parecem se interessar no que desejam suas companheiras. É interessante observar que não se trata apenas de abordar a sexualidade feminina, mas A SEXUALIDADE, pois nós também fazemos parte do estudo da sexualidade, falar da sexualidade da mulher não é um assunto só para mulheres. A arte erótica feita por mulheres é ignorada por homens ou objetificada por eles, nunca vista como parte do estudo erótico. O corpo nu da mulher é a imagem mais exposta na nossa sociedade, essa hq não se trata disso, mas sim de uma mulher observando a si e a seu parceiro, desenhando seus desejos, não a serviço da excitação de um homem, mas como expressão de si. .
#hq #auréliaaurita #readwomen #leiamulheres

13.4.20

[Resenha] Santa Joana dos Matadouros - Bertolt Brecht


Tendo como tema principal a crise capitalista e as contradições desse sistema, Brecht expõe o ciclo de prosperidade, superprodução, desemprego, quebras e nova concentração de capital desse sistema. O texto busca explicar do ponto de vista de um crítico ao capitalismo, assumidamente marxista que o nosso mundo como ele é, se sustenta pelas desigualdades sociais e exploração: os de cima só se mantêm em cima, pois existem os de baixo que permanecem em baixo, mas que isso também leva ao colapso, só se reestruturando novamente pela morte (literalmente) de alguns.
 A peça foi escrita entre 1929 e 1931, no período do crash da bolsa de valores que atingiu o mundo todo e se passa em Chicago, mas continua tão atual como se tivesse sido escrita ontem, afinal, nada mudou mesmo esse tempo todo.
O cenário é o mercado de carnes dos EUA, Bocarra é um grande magnata dos enlatados, que diante da crise econômica consegue um modo de sair ileso usando dos joguetes empresariais exploratórios. Um de seus adversários, Lenoox, fecha sua fábrica deixando os trabalhadores sem emprego. Joana Dark é uma inocente idealista, que ao ver a situação dos desempregados decide tentar entender os motivos de tudo isso. Nessa decida as profundezas das camadas sociais, tenta ajudar os trabalhadores. Os Boinas Pretas é grupo o qual ela fazia parte, uma organização religiosa, que acaba por se aliar a Bocarra.
Mas nada em Brecht é dividido entre bons e maus, todos os personagens tem suas contradições, pois é pela análise dialética das contradições que Brecht quer que o expectador entenda as questões sociais. Portanto, não é uma peça sobre "quem", mas sobre "o que". O assunto, o capitalismo, este é o personagem central. Não é uma peça fácil de ler, pois é mesmo quase uma aula de economia, porém escrita toda em versos, é por seu tom poético e sensível, característicos do teatro brechtiano que aprendemos pela arte.

[Resenha] Prólogo, ato e epílogo - Memórias de Fernanda Montengero


Com quase um século de vida, finalmente conhecemos a trajetória desta grande artista. Fernanda Montenegro escreve suas memórias entre 2017 e 2019, com a ajuda das entrevistas feitas por Marta Góes, entre 2016 e 2017. Em Prólogo, ato e epílogo, Fernanda usa das divisões clássicas de um texto para narra sua vida. No prólogo conta a história da vinda de seus antepassados para o Brasil, "uma realidade brutal de sobrevivência". Desse modo, a atriz já provoca em nós o reconhecimento de que sua história não começa a partir do  seu nascimento, mas vem de antes, que ela é continuidade de lutas e sonhos. Da mãe, vem a origem italiana e do pai, a portuguesa.

Em ato, ela conta como deixou de ser Arlette Pinheiro da Silva para ser Fernanda Montenegro, encontrou seu companheiro de toda a vida, Fernando Torres, constituiu sua família, viveu entre glórias e lutas a arte do ator, nos palcos e nas telas, mas principalmente sua vida nos palcos. 

Com muita humildade ela conta todos os perrengues que passou pelo sonho de viver O e DO teatro. Mesmo quando teve que começar a trabalhar na tv que era  o que davao sustento para manter-se com o grupo que fundou com o marido, não abandonava os palcos.

Terminamos de ler suas memórias com uma bagagem além de sua vida, mas com o conhecimento do que foi o teatro brasileiro, no eixo Rio-SP, durante décadas. Ela nunca fala só sobre se e comenta de vários nomes importantes do nosso teatro, me emocionei por essa ideia de coletividade tão bonita. E também por ver a grande intelectual que Fernanda é, num mundo que hoje ser atriz na tv é quase sinônimo de ser apenas uma celebridade, ela fala de uma época que ao ator era exigido ler de tudo; e ávida pelo conhecimento, ela lia todos os clássicos e autores do momento. 

Conta como foi passar pela ditadura militar, em que foi perseguida, e as maneiras de continuar resistindo em tempos sombrios. Ao mencionar seus prêmios e conquistas, percebemos que tudo isso foi consequência de uma vida inteira dedicada integralmente à arte. 

Ela relata a instabilidade da vida artística, e como durante décadas, ela e o marido estavam sempre tentando driblar as dificuldades, dos momentos em que não sabiam como pagar o aluguel do mês e ensaiavam de madrugada para dar conta do teatro e dos trabalhos na tv. 

Uma biografia emocionante e digo que essencial não só para atores e amantes do teatro, mas qualquer um que queira saber mais da arte no Brasil pelas memórias de uma grande mulher. Quero salientar que Fernanda não é perfeita, algumas coisas eu discordo dela sim, mas isso de maneira alguma retiraria minha admiração por sua trajetória. Acho que em algumas situações (ALGUMAS) é possível discordar de uma artista e ainda admirá-la. 

"Por mais longa que seja a vida do ator, ele não tem como declarar "Estou pronto". E se o fizer, não é do ramo". 

RJ - 2013 - cybershot