16.1.19

Ler mulheres negras

Quando somos indagados ou indagadas sobre quantas mulheres negras já lemos ou quando nos damos conta de que ao ler recomendações de livros favoritos, quase nunca há um escrito por uma mulher negra na lista, há algumas "justificativas" usadas que são "engraçadas" (contém ironia). Dizem:

1. "Mas eu não sou obrigada(o) a ler mais mulheres negras, nem mais brasileiras, não quero ninguém vindo cagar regra no meu perfil"

Ora, tem uma falta de entendimento muito grande em receber críticas/sugestões na internet. Se a gente desenha certo tipo de padrão que EXISTE, tanto de consumismo como de "preferências", que são moldadas por várias coisas (não é só questão de gosto que várias pessoas vão decidir ler grande sertão: veredas por conta da nova edição da cia das letras que aparece no seu feed a cada 5 segundos ou de cem anos de solidão que tem edição nova todo ano, mas não se vê nenhuma propaganda de lançamento da Alzira Rulfino, por exemplo), as pessoas logo acham que a gente vai colocar um guarda municipal na casa de cada um obrigando todo mundo a só ler mulher agora, a só ler brasileira, a só ler negras. NÃO GENTE, NÃO É ISSO. É só um dado, uma observação, um fato: mulheres negras são menos lidas, menos premiadas, menos publicadas. Simples. Ninguém vai te colocar na cadeia por não ter lido nenhuma mulher negra no ano, você não é a pior pessoa do mundo, não se trata desse juízo de valor moral/ético. Mas também precisamos aceitar nosso lugar de privilégio, precisamos aceitar que estamos contribuindo sim para essa exclusão, ninguém tem que levar 700 chicotadas por isso, mas acredito que reconhecer que "é verdade, eu dou menos atenção a literatura produzida por mulheres negras, vou procurar mudar isso", não vai arrancar o couro de ninguém também. Agradeço muito a perfis como o da @camillaeseuslivros, da @impressoesdemaria, @guardiadaestante e @empretecendonarrativas por sempre incentivarem a lermos mais mulheres negras. Eu também não decidi fazer isso para ser mais cool (outra justificativa que vou destrinchar depois), ter mais seguidores ou só parecer mais consciente. Eu quero ser mais consciente e acredito no poder da literatura para isso. E querer ser mais consciente não é só para parecer ser algo ou para me exibir desse grande feito na vida. Não vou eliminar todos os meus defeitos porque li Chimamanda, mas com certeza não saio a mesma depois de uma leitura dessas, com certeza irei pensar melhor meus posicionamentos como feminista branca, com certeza irei rever situações em que fui racista e eu acho isso sim importante para resistirmos todas juntas.



“Eu fiquei abismada com a quantidade de mulheres negras que não conseguem publicar e quando publicam é em livros de antologias – não são livros próprios -. Então, elas precisam pagar para publicar, quando acontece, e têm dificuldade de divulgar o trabalho. É uma realidade muito dura para as mulheres negras” Calila das Mercês

8.1.19

Acompanhamento Semanal + Resenha de Carta ao Pai (Franz Kafka)

Nessa primeira semana de Janeiro (1 a 7), resolvi ler uns livros curtos que já estavam na minha lista de quero ler há um tempo, foram: Um Coração Simples (Flaubert); O Papel de Parede Amarelo (Charlotte Perkins Gilman); a HQ Frango com Ameixas (Marjane Satrapi) e Carta ao Pai (Franz Kafka), comecei também A Rosa do Povo (Drummond). Gostei dessas escolhas pois em pouco tempo li gêneros bem diversos, novela, conto, quadrinhos, uma espécie de autobiografia epistolar e poesia

Quero escrever aqui um breve comentário sobre Carta ao Pai.

Primeiramente, como avaliar uma carta de 50 páginas escrita por um filho ao seu pai como um acerto de contas de todas as mágoas de uma vida? Como pôr uma nota a isso? Pois bem, não foi para ser avaliada como elemento literário que Carta ao Pai veio ao conhecimento do público, afinal, nem ao próprio destinatário ela foi entregue, mas graças à desobediência do amigo Max Brod, a quem Kafka confiou não somente a carta como toda sua obra para que fosse queimada, nos foi entregue essa ferida aberta epistolar de filho para pai e mesmo não intencionalmente se tornou um documento de análise importantíssimo para entender alguns pontos da obra de Kafka, o próprio Kafka, com certo pesar, afirma que o pai foi uma inspiração para sua obra.

"meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito. Eram uma despedida intencionalmente prolongada de você"

Como muitos escritores, Kafka explorou angústias pessoais em sua obra. As relações burocráticas, o trabalho maçante, as opressões familiares, temos conhecimento de parte da fonte de "inspiração" para o universo kafkiano ao ler esta carta.

Lemos nessas páginas uma tentativa de reconciliação que ao fim da carta o próprio Kafka acredita que será frustrada, pois seria difícil o pai admitir todos os erros, sendo um típico pai orgulhoso e dominador que acredita que os filhos são todos ingratos; ao mesmo tempo que não há outro modo de Kafka falar do que sente em relação ao pai sem apontar os sofrimentos que este lhe trouxe e situações mais traumatizantes proporcionadas por ele.

Para Kafka, o pai sempre foi um tirano, insensível aos seus sentimentos e sempre fez questão de deixar explícito seu desprezo a tudo que o filho fizesse, desde a escolha pela literatura aos noivados - que nunca culminaram em casamento. 

Assim, Kafka também desenha sua própria personalidade, que pela influência aterradora do pai o tornou medroso, calado, desconfiado de si e dos outros. Na escrita da carta, Kafka também se desculpa algumas vezes pelas acusações que faz e na sua análise de si afirma que talvez não tivesse se tornado um homem diferente do que é mesmo sem essa presença tirana do pai, o que transparece ainda um medo da reação paterna. Em alguns momentos ele também elogia o pai, por, por exemplo ter lhe dado certa liberdade de escolher a profissão, mas também este jogava na cara muitas vezes que se os filhos tinham a vida que tinham era graças aos sacrifícios dele, o que gerava esse peso enorme de ser uma decepção, e a auto depreciação constante que vemos tanto nos personagens dos livros como na carta. 

Involuntariamente eu não pude deixar de tomar esse documento tão pessoal como um quadro para várias reflexões sobre as relações parentais. A figura do pai de Kafka não é distante de alguns pais que conheço. Herman Kafka é um exemplo tradicional do "chefe" da família patriarcal, no posfácio é citado um ensaio de Walter Benjamin em que ele associa Herman com os burocratas do universo kafkiano: "o pai é uma figura que pune. A culpa o atrai como atrai os funcionários da Justiça", Objeto intrigante de análise literária e biográfica, Carta ao Pai se desviou de seu objetivo (talvez parte dele tenha sido cumprido do lado de Kafka, o de colocar no papel todos os seus traumas) para se tornar uma dolorosa peça sobre as difíceis cordas que unem e separam pais e filhos.





Resenha: Seja homem (JJ Bola - Editora Dublinense)

Seja Homem é um livro que busca analisar a construção da masculinidade no patriarcado, discutindo como as práticas do que seria “ser um home...