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2.3.24

Resenha: Seja homem (JJ Bola - Editora Dublinense)

Seja Homem é um livro que busca analisar a construção da masculinidade no patriarcado, discutindo como as práticas do que seria “ser um homem” são responsáveis principalmente pela violência de gênero.


O livro tem o intuito de conscientizar sobre a criação do mito do que é “ser um homem” passando por várias questões como: homofobia, violência sexual, feminicídio, a ideia de que homem não chora e não pode demonstrar sentimentos, etc.


Busca desmascarar essa masculinidade tóxica 

mostrando alternativas para pensarmos em outras masculinidades, incentivando homens a agirem diferente e recusarem esse papel do “macho”, propondo que homens se tornem aliados das mulheres na luta por uma sociedade mais justa, igualitária e não-violenta.


Com uma linguagem pessoal e direta, é interessante que JJ Bola como um homem negro traz para a discussão as questões raciais que vivenciou, mostrando que a masculinidade beneficia e prejudica homens brancos e negros de formas diferentes. 


E por fim, eu gosto da lucidez como o autor trata esse tema que é bem complexo e espinhoso, de forma muito didática. 


Ao final sugere inclusive 10 passos para começar a tirar essa máscara da masculinidade e me deixou até com um gostinho de esperança no final, de pensar que se mais homens lessem esse livro e QUISESSEM mesmo tirar essa pele de “homem” com todas as camadas grudadas na suas peles, o mundo poderia ser melhor para nós.



29.6.22

Sobre Fotografia - Susan Sontag [Trechos] [leitura 37]

Na Caverna de Platão

[...] quanto mais eu pensava sobre o que são as fotos, mais complexas e sugestivas elas se tornavam.


Em primeiro lugar, existem à nossa volta muito mais imagens que solicitam nossa atenção. O inventário teve início em 1839, e, desde então, praticamente tudo foi fotografado, ou pelo menos assim parece. Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condições do confinamento na caverna: o nosso mundo. Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça — como uma antologia de imagens.
Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento — e, portanto, ao poder
Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram uma foto. Numa das versões da sua utilidade, o registro da câmera incrimina.

18.5.21

Todos os meu humores - Dia Nobre



Em Todos os meus humores, Dia Nobre fez eu me reconectar com passagens internas em mim, a poesia se transforma no material utilizado por exploradores da alma. 

Ao lê-la, pecorri desertos, alpes, zonas abissais e florestas. Em cada paisagem, ou em cada um de seus humores, reconheci fragmentos meus e me senti abraçada, menos sozinha e mais viva. 

Às mulheres, os adjetivos desequilibrada, histérica, raivosa, frígida são constantes ao longo da História e da Literatura. E como historiadora, Dia Nobre conseguiu unir em sua poesia a memória de nossas antepessadas queimadas, julgadas, apedrejadas e levantar uma fogueira não para morrermos, mas para renascermos, com o fogo de nosso sexo. 

Em Todos os meus humores não escondemos nossas camadas, ossos, pele, aqui é tudo exposto, goste ou não. E quando Dia afirma que "é anônima", ela diz que é todas nós. 

Os poemas também falam muito sobre o amor, o amor a outras mulheres, envoltos em desejo e decepções com intensidade e leveza ao mesmo tempo. 

No livro, ela mistura poesia e prosa poética, alguns poemas são mais breves e outros mais longos. Há na maioria deles um tom bem cotidiano e íntimo que não nega a influência de Ana Cristina Cesar e eu amo! 

Ao terminar o livro senti que não escrevo, enlouqueço ou leio sozinha, porque "não me importam as pedras / as transcendo na ponta de minha caneta". 



31.3.21

[Resenha] Ninguém vai lembrar de mim - Gabriela Soutello

É um livro difícil de pegar nos braços, são tantos sentimentos, imagens e sensações que me perfuram que gostaria de conseguir reter todas as palavras aqui na retina, para nunca esquecer.


Mas sei que esquecerei, essa é a tristeza da leitura. Esquecemos algum dia todas as frases que tanto nos maravilharam.

Ficamos apenas com o que cola no corpo. Por isso ler, não é algo só intelectual, é sensorial. E o livro de Gabriela Soutello mexe mesmo com nossos sentidos.

O livro é composto por prosas poéticas. Não existe uma narrativa linear, também não são contos da maneira convencional que entendemos o que é um conto.

Aqui temos fragmentos do percurso investigativo de uma mulher com sua solidão, amores, sexualidade, divagações sobre o futuro e memórias. Não em busca de nada específico, apenas deixando-se escorrer em vermelho.

Cada texto, mesmo que não totalmente compreensível em uma primeira lida, parecia narrar uma parte minha. Isso porque Gabriela consegue revirar por dentro detalhes íntimos das relações humanas.

Não conheço Gabriela, não sei quem ela é, o que é verdade ou não e não importa. O que temos é um material de entrega que nos pede mutuamente permissão para desbravarmos-nos.

11.3.21

A mulher mais amada do mundo - Vanessa Passos

Alguns livros nos marcam pelos longos meses dedicados a eles como uma travessia persistente. 

Outros pela velocidade com a qual atingem nosso íntimo como uma farpa, um pequeno objeto perfurando nosso corpo e latejando por alguns dias. 

Nesse segundo grupo está o livro A mulher mais amada do mundode Vanessa Passos. 

São 13 contos que possuem no máxino duas páginas cada, todos com mulheres como protagonistas, tazendo histórias sobre solidão, luto, descobertas interiores.

O grande foco são as personagens com suas contradições e veredas, que me fizeram refletir sobre as mulheres que habitam em mim - pois ao longo da leitura me identifiquei com várias. 

Em nossa sociedade, a união entre mulheres foi destruída como projeto político, como encontramos no livro Calibã e a Bruxa de Silvia Federici. Sentimentos nocivos de competitividade e rebaixamento entre mulheres são incentivados na mídia e nas representações artísticas. 

Na contramão de tudo isso, o livro de Vanessa Passos surge desse fogo usado para queimar nossas antepassadas, cada história pega na sua mão e te convida a também contar as suas. São contos-gritos de liberdade contra esse apagamento.

Em um dos contos, quando a neta de Alice decide contar a história da avó, não é só sobre ela que a personagem se refere, mas da vida de milhares de mulheres que não foram ouvidas, que não acham que suas vidas são banais demais para a literatura, e aqui, eu sinto que cada história que temos dentro de nós importa, muito.

Os contos me fazem observar também as mulheres ao meu lado e as que já passaram na minha vida; me faz amar mulheres de modo geral, como um coletivo, me faz querer que cada uma se sinta: a mais amada do mundo. 


10.3.21

Todos os nós, Maria Luiza Maia



Todos os nós é o segundo livro da escritora baiana Maria Luiza Maia. O título, de início, me chamou atenção pela abertura de dualidade em que remete a nós (angústias) internos, as "falas entupidas" como diz Ana Crisitina Cesar, ou "nós" como uma multidão contida em si. E sem chegar a nenhuma conclusão, sinto ambos.

Li a poesia de Maria Luiza como uma conversa infinita no espelho, como se eu ficasse tentando entender o que é meu corpo no mundo.

Aliás, essa investigação do corpo é um tema transversal durante o passeio nessa leitura.

Ao longo do livro há uma sequência de poemas intitulados "Para Clara", que não são seguidos um do outro, em que Maria constrói a imagem marcante de um corpo que tenta se costurar.


Achei essa sequência o ponto alto do livro, principalmente por serem saltados, e me deu a sensação de atravessar vários sentimentos, mas sempre voltar para me perguntar como me costurar quando rasgada. Ao que Maria avisa: "não espere que alguém os emende".

Os poemas, assim, vasculham a estrutura desse corpo rompido, espatifado e também dialogam com o próprio fazer poético com ironia como quando conclui que "os poetas são mentirosos" e rebate possíveis críticas sobre escrever um poema que não tem rimas e palavras difíceis.

Todos nós é uma leitura que me faz enfrentar meus buracos, minha solidão, com poemas que ficam no ar durante um tempo "para que a pele se acostume com os pontos".

18.2.21

Um útero é do tamanho de um punho - Angélica Freitas



Esse é o segundo livro da gaúcha Angélica Freitas, publicado em 2012 e considerado um clássico da poesia contemporânea. 

Eu conhecia o livro há um tempo, e tinha lido alguns poemas soltos, mas faltava tomar a decisão de comprar o livro e ler do começo ao fim. Sem um motivo muito específico, a não ser um amigo que perguntou se eu conhecia e eu respondi a famosa frase "conheço, mas não li", resolvi comprar no final do ano passado. 

A poesia, para Angélia é uma investigação, os poemas não causa o sentimento que geralmente se procura quando lê-se poesia: identificação, emoção profunda. 

A conexão gerada entre o leitor e a poesia de Freitas é da ordem do humor, mesmo vinda a partir da opressão. Alguns poemas terminam com uma picada de agulha, mas nenhum deles é uma punhalada e isso não significa ser um livro menor. 

"Um útero" vai investigar várias questões da condição da mulher na sociedade, com muito sarcásmo e sagacidade.

Os versos seguem uma estrutura que busca enfileirar os padrões sufocantes do universo feminino. 

Essa repetição tanto marca a sonoridade como dá uma sensação também de cansaço no eu-lírico-mulher. Os poemas surgem em séries, como bonecas-russas, um a partir do outro. 

A poeta, assim, revela com ironia os modelos rídiculos os quais mulheres são ensinadas a existir para sermos "boas", "limpas", "sóbrias". 

No entanto, o livro não traz um tom taciturno de denúncia, e sim humorístico. Cansada de berrar e chorar, uma mulher gargalha, debocha, faz poesia e incomoda. 

Os poemas podem "enganar" e "brincar" com o leitor pela aparência de simplicidade, mas inclusive em entrevista, Angélica fala da importância da prática, do erro, do estudo, da leitura e do treino na escrita. Até para dar esse aspecto de ser à toa é preciso bastante lapidação.

Um útero pode ser do tamanho de um punho, ou de um poema, e um poema pode ser do tamanho da nossa imaginação. 

Um útero é do tamanho de um punho sugere no título encontrar esse lugar de força, de luta do punho cerrado como um símbolo masculino, para se transformar nesse órgão que sangra rindo e esmurrando o mundo ao mesmo tempo. 



31.1.21

Home Body (Meu corpo, minha casa) - Rupi Kaur

Rupi é uma escritora muito importante para o movimento mais recente de poesia de cunho feminista, por ter viralizado e chegado em muitras pessoas que inclusive não gostavam de poesia e mulheres que não se viam como feministas.

São poemas que falam de um lugar de dor, geralmente tratando de relacionamentos abusivos, abusos sexuais, sentimentos de baixa auto estima, mas ao mesmo tempo procuram construir uma rede de empatia e apoio para que mulheres consigam se inspirar e encontrar força em momentos de vulnerabilidade.

Outra caraterística da autora que têm muita influência em várias poetas contemporâneas é a construção do último verso do poema escrito em itálico e com um travessão. 

Na primeira parte do livro, chamado Mente, Rupi expressa com crueza os sentimentos de experiências traumáticas de abuso infantil e como isso leva à depressão, ansiedade e a sensação de deconexão com seu corpo. 

Por ter virado um fênomeno literário e ter inspirado muitas pessoas a escrevem sobre essas temas e até com o mesmo estilo, eu confesso que achei previsível toda a temática de Meu Corpo Minha Casa assim como a estética da autora. 


Por exemplo, o poema:



Você põe tudo a perder

quando não ama primeiro você

- e ganha tudo quando se ama



Me dá a sensação de já ter visto essa mesma frase muitas vezes. 

Não desvalorizo a pertinência de ainda trazermos esses temas para a poesia, acredito que sim é muito significativo encontrar uma voz que expresse dores que muitas vezes não temos coragem de falar. Mas por vezes eu achava desinteressante a maneira como isso era exposto, no entanto entendo a importância de também trazer uma escrita mais "direta" principalmente por Rupi ter aproximado tantas pessoas da poesia.

8.1.21

A verdade por trás do seu sorriso - Paloma Weyll

Amanda é a protagonista da história, uma mulher apaixonada pela sua profissão, que nunca teve relacionamentos duradouros por ter uma rotina de trabalho muito intensa. Até conhecer Roberto, um homem que se mostrou desde o ínicio muito interessado nela.

Roberto apareceu na vida de Amanda num momento de fragilidade, oferecendo atenção e carinho. Até que a máscara de perfeição começa a demonstrar rachaduras. Aos poucos ele foi se transformando no oposto de tudo que aparentava ser no ínicio. 

Repentinamente Amanda perde o emprego e ele pede o divórcio a deixando com um filho pequeno para criar.

Essa narrativa é corriqueira na vida de muitas mulheres, diariamente homens abandonam filhos sem deixar nenhuma assistência financeira e é justamente de vivências comuns que Paloma extrai material para seu romance, adicionando elementos digno de um thriller

Na minha interpretação, Amanda vive um relacionamento abusivo que ela mesma não consegue exergar. O livro nos faz reflerir como muitas mulheres permanecerem em relações desse tipo pelo medo de ficar sozinha, por terem um filho com a pessoa, etc. 

E ai se submetem à tentativas exaustivas de tentar "ver por outro lado", de entender, de desculpar. Vemos como Amanda vai perdendo sua força, sua independência pela manipulação que Roberto cria. A sensbilidade com que a autora trata dos sentimentos conflituosos de Amanda é um dos grandes atrativos da leitura. 

O livro me surpreendeu por mostrar como muitas vezes esse tipo de abuso não é escancarado. Nem todo relacionamento abusivo contém violência física, mas é evidente a violência piscológica que Roberto causa. 

Amanda encontra apoio e se reconstrói com a força de outras duas mulheres: Maria, sua secretária doméstica e Ana, a mãe de Roberto, a qual ele sempre demonstrou desprezo. 

A relação de fortalecimento que se constrói entre as 3 mulheres é inspiradora. No entanto, senti vontade que a personagem de Maria fosse melhor desenvolvida.

Como muitas mães, Ana, a mãe de Roberto, se encontra em um conflito: ela deseja ajudar Amanda a se reeguer, mas também não se se vê abandonando seu filho.

É importante salientar que Roberto é a representação de muitos homens que abusam psicologicamente de mulheres, manipulando e perseguindo quando não obtem o que querem. E se por um lado Ana, sua mãe exerga ele como doente, esse não é o ponto de vista da autora. 

No mais, o romance de Paloma possui uma escrita que me prendeu bastante, é fluído, bonito e me fez pensar em como muitas mulheres são condicionadas a aceitarem um relacionamento abusivo a todo custo, por diversos motivos. na importância da união entre mulheres como força regeneradora. 


20.11.20

A poesia insubmissa em "Não vou mais lavar os pratos" de Cristiane Sobral




Em "Não vou mais lavar os pratos", o poema que leva o nome do livro é uma revolução, ao "abrir um livro e uma semana depois decidir: não levo mais o lixo para a lixeira". E mais na frente diz "resolvi ler o que se passa conosco / você nem me espere". A poesia não é um luxo, já dizia Audre Lorde. É na palavra que o eu-lírico reescreve a história, aprende a ler o mundo, e não aceita mais os moldes que "esperam" que pessoas negras representem. 

Os versos de Cristiane rompem esteriótipos de submissão, como em Sonho de Consumo, quando ela que determina seus desejos e condições em um relacionamento. Nos poemas sobre relacionamentos são permeados pela força de uma mulher que não aceita migalhas ou menos do que merece. Esse sentimento é muito importante, pois a questão do preterimento afetivo de mulheres negras é parte também do racismo estrutural. 

Porém, os poemas representam uma emancipação da espera por aceitação alheia, ao celebrar toda a maravilhosidade de ser quem se é, e ao invés de esperar, ela "abandona a convicta e confortável clareza das coias". Também enaltece a beleza negra e suas raízes, em poemas como "Escova Progessiva?", "Pixaim Elétrico" e "Algodão Black power". 

O livro é repleto de poemas de coragem e força, mas a poeta não esconde suas dores, fala de solidão, medos e aponta para um caminho de Resiliência e esperança guiado por "poemas faróis". 

Comprei esse livro diretamente com Cristiane Sobral para presentear minha amiga Amanda Benevies (veio a pandêmia e ainda não consegui entregar o presente). Na ocasião Cristiane deu uma aula de abertura de um curso para mulheres negras. Essa aula era aberta ao público, não só as alunas do curso e como já admirava o trabalho de Cristiane pela internet fui prestigiá-la presencialmente.

Não pude deixar de perceber que eu era uma das poucas mulheres brancas na sala e meu namorado o único homem branco. Em uma sociedade que elimina corpos negros diariamente, nós pessoas brancas, estamos tão acostumados a sermos protagonistas o tempo todo, a termos a voz principal em todo lugar, a sermos nós os homenageados ano após ano em premiações, e a tudo isso ser normalizado, que a gente esquece que não, não somos o centro do mundo.

Foi importante ver um lugar em que mulheres negras pudessem encontrar força, afeto e amaparo e é esse lugar que se ergue na poesia de Cristiane Sobral. 

19.11.20

Narrativa Fisgante: Fique Comigo (Ayòbámi Adébáyò)

Fique comigo foi a leitura que mais me prendeu no ano, fazia tempo que eu não me sentia tão dentro de uma história ao ponto de realmente sofrer com personagens fictícios e querer bater em outros se eu encontrasse na rua. Por um lado, senti um alívio ao pensar ser tudo ficção, porque a vida Yéjide é plot twist atrás de plot twist.

Esse é o livro de estréia da nigeriana Ayòbámi Adébáyò e conta a história de Yéjide e Akin, um casal que dediciu ser monôgamico dentro de uma sociedade poligâmica e que não tiveram nenhum filho nos 3 anos de casado dentro de uma cultura que centraliza a função da mulher na maternidade. O fato de Yéjide não ter um filho praticamente anula a utilidade dela no casamento o que faz com que Akin o faça case com uma segunda esposa, mesmo tendo decidido pela monogamia com Yéjide. Essa nova situação chega a Yéjide inesperadamente o que desencadeia uma série de reviravoltas. 


Além disso, é de uma experiência riquíssima termos contato com literaturas africanas, que nos mostram outras formas de cultura ao mesmo tempo que temos uma geraçõa de escritores fenomenais que relacionam tradição e modernidade, com críticas socio-políticas em suas narrativas. 

Já fiz uma resenha no canal sobre o livro, mas vim só aqui deixar minha recomendação para ir lá conferir o vídeo. 




Se você estiver com alguma ressaca literária ou sem conseguir se prender a nenhum livro, esse com certeza não vai fazer você querer parar de ler. 


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16.11.20

As cavernas que habitam mulheres ferinas: sobre Um Buraco com meu nome, de Jarid Arraes




Tem livros que sinto que vão me cortar fundo, então eu preparo a carne por um tempo, fico ali observando de longe por alguns meses ou anos até, apesar de saber que nenhuma preparação suaviza o contato com poemas que tomo nas mãos como vulcões de coisas que eu mesma guardava e não sabia. 

Assim que vemos Um Buraco com Meu nome de longe, o livro nos encara como uma fera, a capa é preta ao fundo, com rabiscos cinzas preenchendo-a quase toda, e o título em vermelho sangue e letras grossas, assim: UM BURACO COM MEU NOME.

Esse é o primeiro livro em poesia da escritora cearense Jarid Arraes, um nome já reconhecido na literatura contemporânea brasileira por seus contos e cordéis. É com ele que Jarid, funda o selo da editora Jandaíra, Ferina, dedicado à publicação de mulheres. 

Um buraco como uma caverna onde habitam mulheres ferinas, foi essa a imagem que me veio ao engolir o livro, dedicado "aos que nem sempre encontram matilha". Dividido em quatro partes: Selvageria; fera; corpo aberto e caverna a obra também contém ilustrações da própria autora em desenhos que lembram pinturas rupestres. Me trouxe a sensação também de uma mulher presa, desenhando e escrevendo versos sobre sua solidão. 

A primeira e segunda parte vão trazer poemas de tom insurgente, tecendo sobre o corpo da mulher, a cidade, solidão, a loucura e as relações entre gêneros. 

A terceira começa com um poema inicialmente convidativo: "venha desenhar o mapa do meu corpo aberto", mas logo mostra que para conhecer o "meu" corpo, é precis admirar as vísceras também. Um corpo em que "paredes desabam" e se busca as linhas da loucura. Os versos vão investigar cada fio de cabelo, peso e tamanho desse corpo-fera-aberto, também passando por questões de sua identidade como mulher negra.

O livro termina com o poema Chama. trazendo o fogo como um ímpeto de regeneração. Uma chama quem vem pelo contato por meio da escrita, da palavra - talvez.

Às selvagens, às loucas, às não amáveis, Um Buraco com meu Nome é uma pergunta, que nos torna selvagens são as interrogações que nunca conseguiram, por mais de séculos que tentaram, nos calar. 

Os poemas-canções de Prelúdio in Blue, de Rafaella Britto




Sendo esse um livro de poemas, talvez eu não pudesse imaginar personagens, cheiros, cenários e sons, elementos fundamentais das narrativas. Prelúdio in Blue, por outro lado, rompe essa dicotomia e explode de suas páginas uma diversidade de personas, aromas, e ambientações, todos envoltos por uma névoa em azul, azul que não é frio, mas morno, como um abrigo. 

O livro de estréia da paulistana Rafaella Britto, publicado em 2020 pela Editora Penalux, é a uma das mais belas homenagens que já vi ao casamento de séculos da música com a poesia, nesse caso, mais precisamente à música de raízes negras. Os versos de Rafaella irrompem em ritmo de samba, blues & jazz, saindo rodopiante das mãoas da poeta, prontos para invadirem à noite. 

Because the night belongs to lovers, diz a música de Patti Smith, e é assim que sinto também os poemas de Prelúdio in Blue, seres pertencentes à noite, e nascidos de um profundo amor. 

"Blue, songs are like tattoo" são os primeiros versos da famosa música Blue da cantora Joni Mitchel, que está na epígrafe do livro. É assim que Rafaella leva essa música e tantas outras que a inspiraram na criação de seus poemas como tatuagem, como parte de sua pele. 

Inclusive, ela afirma em uma entrevista que o livro é uma busca por sua própria identidade como mulher negra, e nesse movimento de elevar grandes artistas negros da música, a escritora constrói em seus poemas-canções um percurso de memória e descoberta. 

Além da música, o cinema é também uma arte bastante referenciada no livro. Rafaella é cofundadora e editora da revista digital Cine Suffragette, dedicada às mulheres e minorias no cinema e constrói cenas que revisitam atmosferas cinematográficas como em Amado Mío: 

"Ama-me para sempre

na ilusão de um velho cinema"

Prelúdio in Blue é um mosaíco poético que chega para o leitor como a descoberta de uma caixa de fotografias antigas, revelando a contrução de uma vida que emana Arte, uma leitura inspiradora que nos faz pensar quanto de nós é constitúido por belos momentos em que alguém decidiu criar algo e colocar no mundo


10.11.20

Raízes do Meu Ser - Telma Pacheco Tãmba Tremembé





        A nossa história de vida não começa com a gente, começa antes, é essa a primeira lição que aprendo com Raízes do Meu Ser - de Telma Pacheco Tãmba Tremembé.

Existem infinitas formas de definir a importância de um livro. E eu posso dizer, sem pestanejar, que esse é um dos livros mais importantes da minha estante tamanho é seu poder de resgate histórico, ao confrontar séculos de apagamento dos povos originários do nosso país. 

Telma é cearense, artesã e militante pela causa indígena. Esse é seu livro de estreia, "resultado de dois anos e meio de busca por minhas raízes" ela afirma na quarta capa do livro. Aqui, ela conta sua história começando em 1800 com sua escancha-avó e continua com sua avó materna, sua mãe, seu encontro como pertencente ao povo Tremembé e termina falando de sua filha. É partir de sua história que Telma quer chegar a verdadeira História e ainda faz o pedido: 


"seja indígena a partir de agora, até pelo menos terminar esse livro.". 


A escolha por escrever uma autobiografia como um coletivo é algo emocionante neste livro. Logo no primeiro capítulo ela anuncia contar "a verdadeira história do Brasil", desmontando as imagens que temos da chegada dos portugueses tão enraizadas em nossa memória pelos livros de História da infância. 

"Éramos nômades, andarilhos, para não sugar aquele espaço íamos para os arredores, até a natureza se refazer".

Pensar que essa liberdade foi transformada em exploração pelos colonizadores, pensar que os povos originários não se viam como donos da terra, mas cohabitantes dela, e hoje precisam lutar por um espaço no qual eles cuidavam e cuidam muito melhor que, nós, brancos.

Ao longo do livro, Telma conta diversas estórias de seus familiares e seus costumes com a consciência de que com isso possibilita a identificação pessoal com tantas outras que continuam resistindo e dando continuidade à cultural original.

Telma também denúncia os preconceitos que sofreu na infância e como ela não conseguiu ser registrada na infância com seu nome indígena, ela relembra uma frase do Pajé Luiz Caboco:

"cortaram nossos galhos, mas esqueceram de cortar nossas raízes".

É assim que Telma nos faz pensar nas nossas raízes e esse resgate parte de uma consciência pessoal e social. Telma teve amnésia e as vezes tem lapsos de memória, que ela pensa estar relacionado ao próprio apagamento de seu povo, mas que encontrou na escrita desse livro uma forma de lutar contra isso. 


2.10.20

Chapeuzinho Esfarrapado e outros contos feministas do folclore mundial (Org. Ethel Johnston Phelps)




E se os contos de fadas mais famosos do mundo fossem contos feministas? Como as coisas seriam?

Outubro chegando, mês das crianças e eu vim dar uma dica de um livro infanto-juvenil sensacional.

Comprei esse livro porque estava (e estou) com a ideia de criar uma peça infantil voltada pra discussões feministas e o livro caiu como uma luva! 

Como o título já diz,esta é uma coletânea de contos folclóricos de toda parte do mundo, que fogem de esteriótipos de gênero perpetuados nos contos tradicionais que ouvimos quando criança, e ainda contamos até hoje. 

Em nenhum momento a intenção é cancelar os Irmãos Grimm ou Charles Perrault (rsrs, tem que avisar né); mas sim, trazer histórias que despertem sentimentos de valentia, esperteza, coragem, humor nas meninas e adolescentes. Que façam meninos e rapazes também entenderem o que é respeito e amor, de verdade!

As personagens femininas do livro não estão à espera do príncipe encantado, não são marcantes pela sua extraordinária beleza e não se submetem as regras impostas. São meninas e mulheres que desbravam o mundo, vão em busca de aventuras e lutam em nome de seus próprios ideais e valores. 

Destaco alguns pontos mais legais do livro:

1. São contos do mundo todo: aqui podemos conhecer histórias tradicionais sudanezas, de povos nativos da América, orientais, africanas, entre outros. O que nos coloca em contato com uma diversidade de saberes. E são contos tradicionais, o que nos faz pensar do que porquê não terem ganhado tanta fama como A Bela Adormecidade, entre outros.

2. As mulheres idosas não são bruxas más e recalcadas pela juventude das mais novas: a expressão "conto da carochinha" (sinônimo de mulher mais velha), ganha um novo significado. Aqui, a experiência de mulheres mais velhas são muitas vezes a grande chave para o final feliz, são personagens dotadas de humor, esperteza e sabedoria ancestral. Seus saberes naturais e místicos salvam outros personagens de enrascadas ao invés de serem colocados como algo para fazer o mal.

3. O casamento não é um fim em si mesmo: muitos dos contos terminam sim em casamento, mas nunca é sobre uma princesa que espera passiva o príncipe; ocorre por que ambas partes foram ativas em seus destinos e decidem se unir. Em muitas histórias são as princesas ou camponesas que salvam os homens. E algumas em que eles já são casados e é pela esperteza da mulher que o casal sai de algum conflito. Mas não no sentido de que a mulher fica lá sempre pra salvar o homem, e sim no sentido de união do casal. Em um conto, as mulheres até deixam os seus maridos para viverem sozinhas em outro lugar sem eles!

4. O livro dessacraliza a tradição: na introdução a organizadora afirma que alterou dos contos elementos de violência ou crueldade, assim como ela retirou uma ênfase desnecessária à beleza que não serviam essencialmente para a história. Achei isso muito interessante, até porque todos esses contos de fadas que conhecemos hoje são também adaptações. Nenhum é totalmente "autêntico". Então porque manter para crianças valores que vão perpetuar machismo, violência e preconceitos? 

Por fim, apesar de serem contos de fadas, o livro não quer ser uma fada sensata (rs) e a leitura é sempre aberta para discordâncias. Mas dentro do que se propõe, achei uma iniciativa inovadora e que merece muito destaque! Histórias importam e precisamos pra ontem contar histórias para nossas crianças que revolucionem a visão de mundo estabelecida hoje. 

10.9.20

Impressões de Leitura: Raul (HQ) - Alexandre de Maio




"Chefe, nessa vida a gente tem que escolher. Fui pra cima e agora não dá mais pra voltar"

Quando decidi comprar essa HQ eu não sabia nada do autor ou da história, a motivação era apenas aproveitar o combo promocional da Editora Elefante e fui totalmente supreendida por uma história digna de filme, conduzida com maestria pelos traços de Alexandre de Maio. 

A HQ conta um pouco da vida de Rafa, um cara que cresceu na Baixada Glicério, em São Paulo,  tendo contado com o crime desde criança, o tio dava golpes de desvio de mercadoria. Pré-adolescente, ele começou a se envolver em furtos e assaltos, quase sendo morto, resolveu depois se tornar "Raul", uma gíria para pessoas que dão golpes em cartão de crédito. Mas o sonho mesmo de Rafa era ser Rapper...

Não vou contar a história toda pra te deixar com a curiosidade de como vai se desenrolar. Eu achei muito interessante a abordagem da HQ de contar essa hitória pela perspectiva de Rafa, e assim somos levados pelo personagem a conhecer uma rotina que só temos acesso de modo muito sensacionalista por programas policiais. 

Em nenhum momento se tenta mascarar que Rafa comete crimes, mas também traz um debate mais profundo quando ele conta de seus sonhos e quais os motivos que o levaram a escolher esse caminho. O final causa impacto pela sinceridade quando Rafa diz que continua no crime por dinheiro, que se acostumou a tê-lo.   

O traço de Alexandre de Maio remete a filmes noir, e ao estilo de Sin City, e a narrativa é conduzida de forma dinâmica em que Rafa explica como funciona as diversas táticas usadas no esquema de ser "Raul" misturando com fatos de sua vida pessoal. 

Não tenho o costume de ler HQ, e gostei bastante da leitura. E aí, você já sabia o que era "Raul"? Conhece algum HQ noir?  

5.8.20

Amoras - Emicida (RESENHA)

Amoras é um livro voltado para o público infantil, escrito pelo rapper Emicida, com ilustrações de Aldo Fabrini, lançado em 2018 pelo selo Companhia das Letrinhas.

Esta é uma leitura que encanta crianças e emociona adultos, ao mostrar a importância de criarmos um mundo em que crianças negras possam crescer valorizando quem são.

Num passeio pelo pomar, Emicida explica a sua filha sobre as amoras e diz "as pretinhas são as melhores que há". Com os olhos brilhando ela conclui "que bom, porque eu sou pretinha também!".

Ao ver alegria nos olhos da filha, Emicida resgata a história de ativistas negros como Martin Luther King Jr. e o líder Zumbi, emocionado pela luta destes sabendo que "nada foi em vão.".

Esse livro é sobre uma menina que reconhece sua negritude pela beleza das amoras e nos dá a esperança de podermos construir um mundo antirracista com mais experiências de beleza e reconhecimento afetivo para as crianças negras. Fico imaginando se quantos adultos hoje não gostariam de ter lido um livro desses quando crianças ou vivido uma experiência de vamlorização de si na infância. 

Numa sociedade em que crianças se descobrem negras pela dor da discriminação, Emicida nos propõe uma reflexão: e se crianças negras pudessem se reconhecer negras pela beleza de sua cor, dos seus cabelos, pelo amor?

Ao invés do bombardeio de imagens de crianças brancas na mídia, exaltadas como padrão de beleza (não só externa, mas ditas com "angelicais", e outros adjetivos de "superioridade"), é na natureza que Emicida encontra o paralelo para criar um mundo que valorize e empodere os crianças pretas. E o mais lindo é que é a própria filha dele que chega a essa conclusão ,ao que ele diz: "Me esforço para ensinar / mas foi com elas que aprendi".

O texto de Emicida é pura poesia, uma música que acalenta o coração. 


24.6.20

Ela Disse - Jodi Kantor e Megan Twohey


"Ela Disse - os bastidores da reportagem que impulsionou o #metoo" vai relatar todo o processo das jornalistas Jodi e Megan para publicarem uma matéria expondo décadas de assédio sexual e a compra do silêncio das vítimas por meio de acordos de confidencialidade cometidos pelo produtor de cinema Harvey Weinstein. 

Ao relatar todo o processo investigativo, o livro levanta diversas questões envolvendo a violência sexual contra mulheres trazendo como plano de fundo a indústria cinematográfica de Hollywood, mas também abrindo espaço para pensarmos na total falta de segurança que ainda há para mulheres nos diversos ambientes de trabalho. 

Como um fio de um novelo, a história começa por Harvey e seus acordos de silenciamento, mas desenrola um emaranhado de relatos da real situação do assédio sexual hoje. Engasgadas com a sensação de que nada mudou durante décadas de luta feminista, percebemos o complô entre criminosos sexuais e um sistema judiciário que não entende o que uma vítima de violência sexual passa, com base em leis que não nos protegem. 

Também traz reflexões sobre a real eficácia do engajamento virtual e o que pode ser de fato mudado quando há um movimento como o #metoo. Faço algumas críticas ao tom jornalístico meio distanciado e por em nenhum momento usarem a palavra machismo e patriarcado como a real origem de toda essa violência. 

O livro acaba deixando a desejar ao não propôr uma crítica que faça os leitores compreenderem que não se trata de um "comportamento predatório" que surge do nada, mas que é amparado pelo machismo e sem a destruição do pensamento patriarcal não estaremos livres nunca e por isso precisamos do feminismo, mas promove um debate sobre o quanto precisamos acreditar numas nas outras e da força dessa união para quebramos essas correntes de silêncio.

7.6.20

Reflexos num Olho Dourado - Carson Mccullers



Carson é uma escritora que infelizmente ainda tem pouca visibilidade no Brasil apesar de sua qualidade literária, contemporânea de Faulkner, Capote e Tenesse Williams, a estadunidense tem um estilo original e foi percursora em trazer temas polêmicos para a literatura. 

Neste curto romance reconhecemos o toque característico de Carson: personagens que destoam de uma normalidade social, incomunicáveis e uma tensão silenciosa entre eles prestes a quebrar a falsa calmaria de suas vidas.

Em Reflexos num Olho Dourado, temos como cenário principal um batalhão do exército e a casa de um dos capitães desse quartel, o oficial Penderteon, um homem gay reprimido, é casado com Leonora, uma mulher muio atraente, mas descrita por Carson como tendo um algum "atraso mental". Logo de cara, Carson revela que aconteceu um crime envolvendo os personagens principais, sem obviamente dizer por quem, quais as vítimas ou como se desenrolou isso. 

Aos poucos vamos conhecendo as figuras e de que maneira elas vão se relacionando e revelando seus segredos.  Todos os personagens sustentam no limite de seus nervos uma vida aparentemente comum, cada um reprimindo desejos sexuais. Essa repressão é o fio condutor da narrativa e o que liga essas estranhas criaturas, que como lemos na orelha desta edição, parecem metade humanos, metade animais, tomando atitudes extremas e violentas, desprovidos de racionalidade, sufocados pela normatividade imposta. 

Eu adoro o estilo inconfundível de Carson narrar as coisas, ela consegue ser poética e ao mesmo tempo jogar na sua cara acontecimentos chocantes sem a menor preparação, te deixando meio desnorteado: ela faz um corte e o sangue só é espirrado na sua cara sem que você possa se defender. 

Bom salientar que a história se passa num EUA sulista, nos anos 30 e os personagens são bem racistas. Mas por outras obras de Carson em que ela trouxe personagens negros ao centro da narrativa, eu vejo que nesse se trata da caracterização dos personagens, inclusive como crítica a essa sociedade com resquícios escravocratas, pois ela zomba desses personagens, ao mesmo tempo que disseca os podres de uma elite neurótica e limitada por preconceitos explodindo tudo isso em violência e autodestruição. 

29.5.20

Chamadas Telefônicas - Roberto Bolaño

Saio mais uma vez apaixonada e com raiva do Bolaño ao mesmo tempo. Amo sua sensibilidade para falar de arte, da literatura e esse desespero latino americano meio Belchior de ser poeta e não ter onde cair morto. Mas como muitas de suas personagens, dá vontade de abandoná-lo depois de ligação estranha quando ele começa a falar de mulheres. O incomodo surge muitas vezes, porque a visão de seus personagens masculinos das mulheres é sempre com algum envolvimento sexual e ele parece sugerir a ideia - bem masculina -  de que uma mulher livre, aventureira e fora do convencional é aquela que transa com todo mundo. Bolaño na sua limitação machista (ui, não pode chamar mais nenhum autor que é bom de machista né? Se for latino-americano piorou) - sim gente, ele é machista, você é machista, todos os homens são, vamo parar de mimimi ta (risos), parece não enxergar que as amarras sociais que prendem uma mulher não se rompem com a quantidade de parceiros que ela faz amor (como ele diz) e abandona. Talvez isso revele também a tristeza dessas relações e não uma libertação. Porque no fundo elas "sabem" que não estão tão livres como pensam. Em alguns momentos as mulheres de Bolaño têm um lampejo de lucidez e apenas vão embora, isso acho interessante. Os contos são literalmente repleto de Chamadas Telefônicas conclusivas nos silêncios e no que não é dito, na aparente falta de objetivo dessas ligações. É das relações mais catastróficas, sem futuro, tristes ou inusitadas que o chileno resolve tirar a matéria para os seus contos. Os personagens se conhecem e se despedem sem maiores mistérios, as amizades começam e acabam com a naturalidade da vida, sem drama, sem explicações, apenas porque é assim "nunca mais o/a vi", é uma frase dita com frequência, ou "soube que morreu meses depois", também é outra. As coisas não se sustentam muito se tratando de seres tão insustentáveis consigo mesmos. Sentimos certa melancolia por tudo isso, mas uma melancolia morna.

RJ - 2013 - cybershot