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29.6.22

bresson

Qual é o gênero de Bresson? Ele não tem nenhum. Bresson é Bresson. Ele é, em si mesmo, um gênero. Anotnioni, Fellini, Bergman, Kurosawa, Dovjenko, Virgo, Mozoguchi, Buñuel - não são iguais senão a si próprios. O próprio conceito de gênero tem a frieza de um túmulo. Quanto a Chaplin - trata-se de comédia? Não: ele é Chaplin, pura simplesmente, um fenômeno único e irrepetível. [...] Sabemos que a coisa toda é inventada e exagerada, mas, no seu desempenho, a hipérbole torna-se profundamente natural e provável, e, portanto, convincente - além de engraçadíssima. Ele não representa. Ele vive situações idiotas, ele é parte orgânica delas.

Nada poderia ser mais nocivo que o nivelamento por baixo que caracteriza o cinema comercial ou as produções padronizadas da televisão: eles corrompem o público de forma imperdoável, negando-lhe a experiência verdadeira da arte

O artista não pode expressar o ideal ético de seu tempo, a menos que toque todas as suas feridas abertas, a menos que sofra e viva essas feridas na própria carne. [...] Afinal, quase se poderia dizer que a arte é religiosa, no sentido de ser inspirada pelo compromisso com um objetivo mais elevado.


Sobre Fotografia - Susan Sontag [Trechos] [leitura 37]

Na Caverna de Platão

[...] quanto mais eu pensava sobre o que são as fotos, mais complexas e sugestivas elas se tornavam.


Em primeiro lugar, existem à nossa volta muito mais imagens que solicitam nossa atenção. O inventário teve início em 1839, e, desde então, praticamente tudo foi fotografado, ou pelo menos assim parece. Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condições do confinamento na caverna: o nosso mundo. Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça — como uma antologia de imagens.
Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento — e, portanto, ao poder
Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram uma foto. Numa das versões da sua utilidade, o registro da câmera incrimina.

11.9.20

Primeira lição de escrita com Ray Bradbury (O Zen e a Arte da Escrita)



"Entusiasmo. Prazer. Raramente ouvimos essas palavras! Raramente vemos pessoas vivendo e, no nosso caso, criando com base nelas! Ainda assim, se me perguntarem sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, as coisas que moldam o seu material e o impelem em direção ao caminho que ele deseja percorrer, eu apenas o aconselharia a olhar para o seu entusiasmo, para o seu prazer."

"Se você está escrevendo sem entusiasmo, sem prazer, sem amor, sem alegria, você é apenas meio autor. Significa que está tão preocupado em manter um olho no mercado, ou um ouvido no círculo de escritores de vanguarda, que não está sendo você mesmo. Talvez nem ao menos se conheça."

"A primeira coisa que um escritor deve ser é animado. Deve ser uma coisa de febres e entusiasmos. Sem esse vigor, seria melhor ele colher pêssegos ou cavar buracos; Deus sabe que isso seria melhor para a sua saúde. "


Primeira lição: as histórias nascem da sua indignação ou empolgação. 


Ás vezes nos perguntamos "de onde esse autor criou isso?", Ray conta duas histórias que criou a partir de situações cotidiana que lhe ocorreram e causaram tanta indignação que resolveu escrever sobre.


"O que você mais quer no mundo? O que você ama ou o que odeia? Encontre um personagem, como você, que vai querer ou não querer algo com todo o coração. Mande-o correr. Atire-o para fora. Depois o siga o mais rápido que puder. O personagem, em seu grande amor ou ódio, vai empurrá-lo até o final da história."


4.9.17

Livros teóricos (fichamento): "O Que é Dialética?" e "Drama como método de ensino"




Leandro Konder foi um filosofo marxista, médico sanitarista e líder comunista. Formado em Direito, Leandro exilou-se em 1972, após ser preso e torturado pelo regime militar, e morou na Alemanha e depois na França até seu regresso ao Brasil em 1978. Doutorou-se em Filosofia em 1987 no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Faleceu em novembro de 2014.

Neste pequeno livro, o autor tentar nortear alguns questionamentos acerca do conceito de dialética, seguindo ao longo do livro um viés marxista. O fato de o autor ter, devido a sua pesquisa, abordado o tema a luz do marxismo talvez deixe o leitor mais leio sobre o assunto um pouco perdido, como foi o meu caso. Resolvi buscar esse livro por interesse pessoal, por ser pesquisadora em arte e curiosa por temas que desconheço. A dialética é um termo chave na filosofia e ciências afins, mas que nos faz também atravessar os acontecimentos levando em consideração questões que se contrapoem, chegando a uma síntese e assim pode nos fazer ter uma visão mais ampla dos assuntos. Entendi que a dialética nos ajuda a pensar o mundo para além do que nos é passado, principalmente nos faz questionar mais a informação que recebemos.

O primeiro capítulo chamado "Origens da Dialética", vai expor como a dialética passou por várias concepções até o que significa hoje. Atualmente, o conceito que dizer "um modo de pensarmos as contradições existentes na nossa realidade, ou seja, uma forma de pensar que a nossa realidade vive em permanente transformação. Mudamos para permanecer e permanecemos mudando.". Analisar o mundo dialeticamente é então pensar as contradições existentes nele e as possíveis transformações.

Em contraponto à dialética temos a metafísica, concepção que prevaleceu historicamente por muito tempo, pois correspondia ao pensamento das classes dominantes, ou seja: os valores e conceitos da sociedade são imutáveis, esse pensamento impossibilitava ideia de transformação que a dialética propõe.

A partir do terceiro capítulo, "A Alienação", o autor começa a tratar mais da dialética marxista e como Marx usou o conceito para falar da luta de classes. Cada vez mais tenho certeza que ler Marx ajudaria a entendermos tudo que nós passamos, toda a questão da desigualdade social. Isso se o Brasil não fosse contaminado por um pensamento que desde a ditadura prega o socialismo como um dêmonio e faz pobre achar que um dia vai ser rico ao invés de entender sua realidade para transformá-la socialmente e coletivamente e não só individualmente. Mas essa é outra questão.

"A partir da divisão social do trabalho, a humanidade passava a ter uma dificuldade bem maior para pensar os seus próprios problemas e para encará-los de um ângulo mais amplamente universal: mesmo quando eram sinceros, os indivíduos se deixavam influenciar pelo ponto de vista dos exploradores do trabalho alheio, pela “perspectiva parcial inevitável” das classes sociais"
"As condições criadas pela divisão do trabalho e pela propriedade privada introduziram um “estranhamento” entre o trabalhador e o trabalho, uma vez que o produto do trabalho, antes mesmo de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que não o trabalhador. Por isso, em lugar de realizar-se no seu trabalho, o ser humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-se em suas próprias criações, o ser humano se sente ameaçado por elas; em lugar de libertar-se, acaba enrolado em novas opressões"

"Marx não inventou a luta de classes: limitou-se a reconhecer que ela existia e procurou extrair as consequências da sua existência" 

(pg 30/31)
Para poder analizar essa realidade que o capitalismo criou, é preciso observar o todo. Assim, no capitulo 4 "A Totalidade", o autor explica que na dialética marxista, o conhecimento é totalizante,

"Se não enxergarmos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa compreensão de uma verdade mais geral."

Desse modo, toda ação humana  para por um processo de totalização, onde nunca alcança uma etapa final. Para observar o todo precisamos ter uma visão do conjunto. A síntese é a visão do conjunto que permite o homem descobrir a estrutura significativa da realidade com qual ele enfrenta. Para conseguirmos o nível da totalização mais abrangente devemos nos recorrer à filosofia da história.

"A visão de conjunto - ressalve-se - é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que ele se refere. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que temos dela. Há sempre algo que escapa às nossas sínteses; isso, porém, não nos dispensa do esforço de elaborar sínteses, se quisermos entender melhor a nossa realidade. A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa - que a visão de conjunto proporciona - que é chamada de totalidade"


Nos capítulos que se seguem autor vai tratar mais do pensamento marxista, mas que perpassam pelo conceito de dialética. Konder finaliza com o capitulo"Semente de dragões"

"Uma das características essenciais da dialética é o espírito crítico e autocrítico. Assim como examinam constantemente o mundo em que atuam, os dialéticos devem estar sempre dispostos a rever as interpretações em que se baseiam para atuar"


"A dialética não dá “boa consciência” a ninguém. Sua função não é tornar determinadas pessoas plenamente satisfeitas com elas mesmas. O método dialé­ tico nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente; ele questiona o presente em nome do futuro, o que está sendo em nome do que “ainda não é” (Ernst Bloch)."

A empolgação e esperança com que Konder fala sobre a importância revolucionária da dialética para o conhecimento humano é algo que pode nos fazer oxigenar o ar de pessimismo que vivemos hoje e ainda se agarrar a crença de que o pensamento crítico possa fazer alguma diferença no mundo, menos apenas como pequenas sementes.

Assim chego a minha vigésima terceira leitura "Drama como método de ensino". A pesquisa de Beatriz Ângela Vieira Cabral se concentra no intercâmbio do drama no eixo curricular da escola, como o drama (entende-se drama como texto dramático, ou simplificando texto para o "teatro") pode ser um método de ensino de outros conteúdos do currículo escolar.

"O Drama, uma forma essencial de comportamento em todas as culturas, permite explorar questões e problemas centrais à condição humana, e oferece ao indivíduo a oportunidade de definir e clarificar sua própria cultura. É uma atividade criativa em grupo, na qual os participantes se comportam como se estivessem em outra situação ou luar,sendo ele próprios ou outras pessoas." pg 11
Beatriz pontua que o Drama já está no cotidiano do aluno por meio da televisão, e outras interações sociais. Com isso podemos entender que o drama é um meio de transmissão de alguma mensagem ou conteúdo. A autora defende a necessidade de unir as técnicas teatrais, do ensino de artes, ao contexto dramático. Assim, Beatriz Cabral nos dá algumas características para essa atividade


contexto e circunstâncias de ficção: o contexto da ficção é a situação imaginária que é colocada no drama. Para que os alunos possam de fato vivenciar esse cruzamento entre o real e o imaginário é necessário que as situações e circunstâncias sejam convincentes e devidamente exploradas, por meio da ambientação, abordagem do tema/assunto e personagens.

processo engloba o arranjo dos elementos dramáticos, relacionando contexto e objetivos que pretende-se alcançar.
episódios são acontecimentos que estarão inseridos dentro da estrutura narrativa. Um sequência de eventos que irão construir o texto dramático permitindo o aprofundamento de detalhes e a escolha de caminhos. Sendo assim o texto final será formado a partir da negociação entre os participantes do processo. Os episódios auxiliam o professor na edificação do contexto.
pré-texto se trata do roteiro, história ou texto a ser desenvolvido, sendo este apenas um ponto de partida para o ínicio do processo. Funciona como um pano de fundo, uma orientação dos exercícios a serem explorados cenicamente. O pré-texto é a base da investigação e escavação do tema/texto a fim de torna o processo mais consistente.

"Enquanto o estímulo sugere a ideia ou ação inicial, o pré-texto indica não apenas o que existe anteriormante ao texto (contexto e circunstâncias anteriores), mas também subsidia a investigação posterior, uma vez que introduz elementos para identificar a natureza e os limites do contexto dramático e do papel dos participantes" pg 16


O drama como método de ensino permite ao professor explorar diferentes códigos linguísticos e possibilita a interação dos alunos em contextos diversificados.

Outro ponto importante é a maneira como mudamos a relação entre professor e aluno ao usar o drama como método de ensino. O professor não se torna o único sujeito das ações, nem sua função é exclusivamnte transmitir conhecimento. Na construção de cenas dramáticas, o professor não deve ser um diretor, ou seja, "não deve estar lá para definir a cena e tomar decisões, mas para entrar no jogo proposto" pelos alunos. Ele pode intervir com questões e ajudar a manter o foco nas tarefas propostas.

A autora propõe em seguida uma reflexão: por que é tão difícil manter a atenção do aluno por 50 minutos, mas os meios eletrônicos conseguem isso falcimente? Em resumo, ela chega ao ponto de que na interação virtual os alunos são agentes. Em que outro momento somos convidados a sermos agentes dos acontecimentos em um ambiente de narração? Os meio eletrônicos tornam ilimitadas as possibilidades de sermos agentes, outro ponto é a capacidade de transformação que o munto virtual proporciona.

"Ser agente e traformar são centrais às linguagens artísticas. Em Teatro Educação o aluno é criador e ator, ele faz e apresenta. Mais ainda, ele o faz e/ou transforma através do próprio corpo" pg 29

Assim, cabe ao professor em face das dificuldades em sala de aula rever suas práticas metodolóficas também, refletindo sobre a qualidade e quantidade do material levado ao aluno.


16.1.17

Fichamento livro: Pina Bausch [Janeiro/2017/leitura 2]





No processo de Bausch, a repetição é usada para desarranjar as construções gestuais da técnica ou da própria sociedade. A repetição torna-se um instrumento criativo através do qual os dançarinos reconstroem, desestabilizam e transformam suas próprias histórias enquanto corpos estéticos e sociais. pg. 46

Para induzir a participação dos dançarinos, a coreógrafa apresenta-lhes uma questão, um tema uma palavra, um som, uma frase: "luto", "Ah..". Em resposta a tais estímulos, os dançarinos improvisam em qualquer meio desejado: movimento, palavras, sons, uma combinação de elementos.  pg 48

"Não é preciso contar o motivo, apenas como."



"Durante o tempo em que a peça está no palco, os primeiros dias, primeiras semanas... ela ainda continua mudando.". Não há necessariamente uma separação entre processo criativo e produto final - as peças estão em constante processo. pg. 52

Movimentos técnicos de dança são mais facilmente vistos como abstratos, enquanto reações e gestos cotidianos são aceitos como naturais, momentâneos, reflexos direto do estado emocional de seu executor. Mas Bausch traz ao palco exatamente o que nos parece mais espontâneo, e o revela como re-presentativo na vida e no teatro. pg 58




As peças de Bausch têm três ou quatro horas de duração, com inúmeras repetições. Sua dança-teatro não re-presenta uma forma concentrada ou simbólica do tempo cotidiano, mas acontece nesse tempo "real" e ainda o dilata, justamente com as percepções do público. Este tem tempo para absorver o material apresentado, para resistir. se deixar levar, ou mesmo para ficar cansado. De qualquer maneira, a longa duração dos trabalhos e suas repetições levam os espectadores a seus limites, provocando experiências.  pg 64



Em Kontakthof, os dançarinos abalam o modelo de perfeição física, e a ilusão de unidade grupal e completude. Assim que termina a música, param na frente do palco, mantendo seus olhares e expressões faciais neutros. Anne Marie Benati começa gradualmente a virar sua cabeça para um lado e para o outro adicionando uma repetitiva risada ao gesto, que parece um compulsivo "não" à ordenada sequência grupal.
Aos poucos, o movimentos de sua cabeça torna-se maior e mais energético, e a risada mais alta e forte. Em oposição ao grupo, Benati torna-se cada vez mais despenteada, barulhenta e solta em seu movimento. [...]. Ao atingir seu máximo volume de voz e velocidade de movimento, ela flexiona um pouco sua perna direita e cai com o corpo rígido e tenso no chão.  pg 69

A repetição nos trabalhos de Buasch rompe com convenções de "estados interiores de consciência" independentes e isolados e sugere os sentimentos individuais como determinados pela linguagem e relações de poder. pg 72



A repetição abre novas formas de perceber a vida humana no palco e no cotidiano. pg 75

O que eu faço - assisto, (...) Talvez seja isso. A única coisa que eu fiz todo o tempo foi assistir as pessoas. Eu tenho apenas visto relações humanas ou tentando vê-las e falar sobre elas. É nisso que eu estou interessada. Não conheço nada mais importante. (Pina Bausch - Raimund Hoghe)




Ensaios de Dança: em muitas cenas dos trabalhos de Bausch, repetição revela o processo de ensaio de dança. Frequentemente, um dançarino repete várias vezes uma específica sequência de movimentos, como se tentasse memorizá-la. 

Treinamento de Dança: Em Bandoneon (1980), o dançarino Dominique Mercy tenta repetidas vezes realizar um passo de balé e sem sucesso cai no chão várias vezes. (...) pela repetição a falha tornou-se parte da sequência tanto quanto a tentativa. É como se ele tivesse (...) contando uma estória sobre poder falhar tanto quanto poder acertar: ambas opções de dança. [...] ele repete porque errou, para tentar fazer melhor da próxima vez, mas erra mais e mais. A cena questiona e inverte a noção de que repetição é um bem sucedido método de aprendizagem. pg 81

[...] Em Kontakthof, Monika Sagon tenta, sem sucesso, fazer a sequência. Após fazê-la uma vez, seu movimento torna-se desajeitado, ela olha para trás para checar o que o outro dançarino está fazendo, e sai do ritmo. pg 84

[...] Pina Baush usa a repetição para expor sua natureza controladora e o reprimido corpo em sofrimento sob seu domínio. 


"O cenário (de Café Müller) reflete dança como ausência, e como a própria impossibilidade da dança.. Ao invés de apresentar um palco com dançarinos se movendo ou começando a se mover, a peça apresenta um palco cheio de ausência de corpos - mesas e cadeiras vazias, num espaço silencioso e pouco iluminado. É como se eventos já tivessem acontecido"


Café Muller


15.10.16

O Erotismo - Georges Bataille - Fichamento

Edição de 2013, Editora Autêntica

"O erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objeto de desejo. Mas este objeto responde à interioridade do desejo." pg. 53 

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Paralelamente, eles se impuseram restrições conhecidas como interditos. Essas interdições essencialmente — e certamente — recaíram sobre a atitude para com os mortos. É provável que elas tenham tocado ao mesmo tempo — ou pela mesma época — a atividade sexual. (pg. 54)


O erotismo, eu o disse, é aos meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se põe conscientemente em questão. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas nesse momento o indivíduo identifica-se com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer que, no erotismo, EU me perco. (pg. 55)

Into One-Another To P.P.P, Berlinde De Bruyckere

Quanto a mim, eu falo da religião de dentro, como um teólogo fala da teologia. (pg. 56)

Exprimo em meu livro uma experiência sem apelar ao que quer que seja de particular, tendo essencialmente a preocupação de comunicar a experiência interior — isto é, a meus olhos, a experiência religiosa — fora das religiões definidas. (pg. 58)

As imagens eróticas, ou religiosas, suscitam essencialmente em uns os comportamentos do interdito, em ou em outros, comportamentos contrários. Os primeiros são tradicionais. Os segundos são comuns, pelo menos sob a forma de uma pretensa volta à natureza, à qual se opunha o interdito. Mas a transgressão difere da "volta à natureza": ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí esconde-se o
suporte do erotismo e se encontra, ao mesmo tempo , o suporte das religiões. (pg 59/60)

jeff simpson

Devemos inicialmente nos dizer de nossos sentimentos que eles tendem a dar uma feição pessoal a nossos pontos de vista. Mas essa dificuldade é geral; é relativamente simples, a meu ver, examinar em que minha experiência interior coincide com a dos outros, e por que meio ela me faz comunicar com eles. (pg. 60)

De duas coisas, uma: ou o interdito age, desde então a experiência não se realiza ou só se realiza casualmente, permanecendo fora do campo da consciência; ou não age: dos dois casos, este é o mais desfavorável. Com freqüência, para a ciência, o interdito não é justificado, é patológico, é feito da neurose. Ele é, então, conhecido de fora: se mesmo nós temos a sua experiência pessoal, na medida em que o imaginamos doentio, nele vemos um mecanismo exterior que penetra em nossa consciência. Esta maneira de ver não suprime a experiência, mas lhe dá um sentido menor. Assim, o interdito e a transgressão, se são descritos, o são como objetos, o são pelo historiador — ou pelo psiquiatra (ou pelo psicanalista). pg. 60


Death & The Maiden by Takato Yamamoto



26.9.16

Waly Salomão - O que é o Parangolé e outros escritos



"Cada pobre que passa por ali / só pensa em construir seu lar / ... seu pedacinho de terra pra morar./ É assim que a região sofre modificação/ fica sendo chamada de nova aquarela/ é assim que o lugar então passa a se chamar favela" - canta o belo samba-épico de Padeirinho (Osvaldo Vitalino de Oliveira), o Bertold Brecht naive da Mangueira. DA ADVERSIDADE VIVEMOS (pg. 79)

Tropicália exibida em 1960 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

TROPICÁLIA = nascimento da imagem de uma nação "na verdade, quis eu com tropicália criar o 'mito da miscigenação' - somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo". Quebra decisiva na ideia de "bom gosto" e a "descoberta de elementos criativos nas coisas consideradas cafonas". (pg. 69)


Assim, SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI é auto-referente e fala da resistência heroica (ou "bandida", conforme o vértice que se veja) do artista frente ao mundinho cooptador dos marchands, curadores, galerias e museus. 


HO soube metamorfosear o mundo dado em sistema significante e chumbar a ordem da vivência com a ordem da expressão.




Relevo espacial A17
"A pintura e a escultura, pra mim, são coisas que acabaram mesmo, não é nem dizer que eu parei de pintar... não foi isso, eu acabei coma pintura, é totalmente diferente" 


Há um ditado que reza que "peixe não sabe nada de água", mas HO é um peixe esperto que vê as águas em que está metido, e escreveu "A dança na minha experiência" (12/11/65): "Antes de mais nada é preciso esclarecer que o meu interesse pela dança, elo ritmo, no meu caso particular, pelo samba, me veio de uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão, já que me sentia ameaçado na minha expressão deu ma excessiva intelectualização. A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes, etc, seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital" 



HO em BRASIL-DIARRÉIA: "É preciso entender que uma posição crítica implica inevitavelmente ambivalências: estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto Às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente - envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos, paternalismos, etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza; a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço or pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão"

B47 Bólide Caixa 22
HO em seu "Programa Ambiental", julho de 66: "Museu é o mundo, é a experiência cotidiana"

E os museus? E a arte das galerias? Prefiro das galeras, que eram lindas e percorriam os sete mares, de sul a norte... (Waly Salomão)

Escrever é gozo, escrever é deflorar. Ler é gozo, ler é deflorar. Duas modalidades escavadas da cena primal contida na página 666 de L'etre et le nèant de J.P. Sartre: "Mas, além disso, da ideia mesma de descoberta, de revelação, uma ideia de gozo apropriativo está incluído. Visão é gozo, ver é deflorar." pg. 97


"A minha posição foi sempre de que só o experimental é o que interessa, a mim não interessa nada que já tenha sido feito... a meu ver, tudo isso é prelúdio para o que eu quero fazer, um novo tipo de coisa que não tenha nada a ver com modelos, do que se chamou e se conheceu como arte... De momo que a pintura e a escultura para mim, sãu duas coisas que acabaram mesmo, não é nem dizer que eu parei de pintar... não foi isso, eu acabei com a pintura, é totalmente diferente..." Trecho da entrevista de HO a Heloisa Buarque de Hollanda

“Me sinto sentado em cima de um barril de pólvora, enrolado em bananas de dinamite”. Hélio Oiticica

"Como situar a atividade do artista? Para quem  faz o artista sua obra? Vê-se, pois, que sente esse artista uma necessidade maior, não só de criar simplesmente, mas de comunicar algo que para ele é fundamental, mas essa comunicação teria de se dar em grande escala, nã numa elite reduzida a experts mas até contra essa elite, com a proposição de obras não acabadas, abertas." - Esquema Geral da Nova Objetividade, 1967

"Ganhar dinheiro não é uma coisa essencial da arte"

"Quer dizer, só a pessoa que tem que prestar contas a um patrão, que é escrava, que é dominada, essa vive na ansiedade demasiada do sucesso ou do temor do fracasso, mas quem não tem esse grilhão, esse peso, está livre para experimentar a vida - Waly Salomão

Tudo pode ser feito. Não se prenda ao "não pode". Fugir diante dos "deve-se" imperativos, como o dia diante da noite - WS.







12.9.16

Vermelho Amargo - Trechos



Exige-se longo tempo e paciência para enterrar uma ausência. Aquele que se foi ocupa todos os vazios. Como água, também a ausência não permite o vácuo. Ela se instala mesmo entre as pausas das palavras.

Sempre via-me como uma promessa em vias de cumpri-se


O amor sobressaltava em mim. Prosperava sem medo e veio sair pelos olhos, nariz, ouvidos, jamais pelas palavras. Investi, sem medida, no verbo amar e me vi mudo. Pela boa o amor me devorava. não projetava outro céu. O amor apaziguava as minhas águas.

a lucidez da solidão enforcava-me, impedindo-me de gritar por ele.



Ao transbordar a vida se faz lágrima e rola salgando o passado morto, mudo, que dorme no canto na boca. Não condimento capaz de temperar o futuro. Só se salga a carne morta. O pranto acontecia pela intensidade dos porquês.


Chorava como se o mar morasse dentro dela. Como marinheiro me senti afogado sob tanto pranto.

Desanuviou em mim a ideia de que as coias existiam alheias a meu desejo. Viver exigia legendar o mundo. Cabia-me o trabalho exaustivo de atribuir sentidos a tudo. Dar sentido é tomar posse dos predicados.

Eu pedalava pelas ruas buscando encontrar-me em cada fim de estrada, no depois da última saudade. Mas também lá eu não estava. A velocidade fortificava a força do vento que varria meus pensamentos, provisoriamente.

3.8.16

[leituras] Zé Celso Martinez Corrêa - Primeiro Ato - Cadernos, Depoimentos, Entrevistas (1958 - 1974)



"Teatro é um bordel? O bordel vive da hipocrisia. Roda viva é assim o antiborde; é a denúncia do bordel. Mostra esse bordel de mundo. [...] Arte teatral pela sensibilização de uma ação. A libertação através de sua reconciliação com a razão. A vinculação da arte ao princípio do prazer. Não é a ética e a moral, mas a realização do instinto orgânico, do sentido da felicidade, abrindo para a libido. [...] O estado de consciência em si mesmo não é nem determinativo nem negativo do caráter da obra de arte. Uma consciência presa por uma aberração sexual, conseguindo se exprimir em obra, sabendo criar um sujeito novo, será válida como as de Goya, Van Gogh, Antonio dias etc. Não é "o" mal se ela excita sexualmente, porque ela visa além disso: além de excitar, ela subverte
Agredir o mundo pacato do cidadão aparentemente bem satisfeito e revelar o que se quer esconder. [...] E o quanto a obra pornográfica não tem ajudado na compreensão da realidade, principalmente com Sade?
Nós recusamos tudo o que impede a realização da nossa personalidade e nos contentamos na esfera dos sonhos... a poesia da transgressão escandalosa é uma forma de conhecimento: mostrar coisas por outros ignoradas
[...]
Roda Viva é pornográfica? Não. Se fosse eu diria. E não teria problema. A pornografia pode ser uma forma de conhecimento. E, portanto, de arte. O que é a pornografia? É o que é feito com a função explícita de provocar a excitação sexual. [...] Roda Viva abre o jogo e mostra o sexo como uma coisa saudável  divertida, que está na raiz de muitas coisas. A pitada de sexo para despertar. Seu objetivo é mostrar tudo que os meios de comunicação de massa utilizam, numa sociedade repressiva para manter o cidadão distraído.
Roda viva não é "para ganhar dinheiro". Nem é falta de honestidade.

(Zé Celso, Notas sobre a campanha da deputa Conceição da Costa Neves contra Roda Vida, junho de 1968)

Tchecov é um cogumelo


Essas transições de um tempo para o outro são as transições da própria vida. Na vida tudo mexe, sempre, sempre, sempre. Tudo está se movimentando em permanência e todos esses movimentos fazem parte da vida. Se a pessoa se põe a favor deles, ela vive, ela capta o que está acontecendo. As coias vão e vem, vem e vão.
[...]
Na realidade tudo é sagrado: a profanação é sagrada também. Não existe uma verdade, um deus, uma religião. Existem milhares de coisas, milhares de deuses; e milhares de deusas, principalmente. O teatro é uma religião de deusas, principalmente.
[...]
O teatro que se faz aqui é branco, sem swing, sem possessão; um teatro em que se fala mal, se articula mal, que só consegue tocar a classe média, uma classe média acomodada na compaixão, na piedade e na auto comiseração. O teatro brasileira está preso, de coleira. "Possessão" é a possibilidade de você entrar transe, em "posse" de você mesmo e dos elementos humanos que te rodeiam.



13.7.16

Laços de Família - Clarice Lispector - Trechos

Clarice revela da alma humana os sentimentos mais cobertos de escombros. Clarice revela o ódio, a culpa, a piedade. Clarice derruba as aparências, quebra ovos, espalha em amarelo, vermelho e marrom tudo que prendemos nos punhos cerrados e sorrisos abertos. Foi muito importante ler esse livro com a minha nova tomada de consciência sobre a representatividade da mulher na literatura, os contos em sua maioria são protagonizados por personagens femininas e isso é de extrema importância. Clarice coloca as "donas de casa", senhoras do lar da classe média, sob um viés mais humano e complexo, as tira da casa de bonecas, assim como fez Ibsen, mas com maior intensidade, pois agora é a própria mulher que fala, que grita, que nos olha com a ferocidade de um búfalo, mostrando sua preciosidade.

.Trechos.
O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. (Amor)


Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica.
[...]
O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta (Feliz Aniversário)

Judi Dench

Foi para o lavatório. Onde, diante do grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda, supersônica: Estou sozinha no mundo! Nunca ninguém vai me ajudar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!
[...]
Há uma obs­cura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo. (Preciosidade)

Saute d’humeur | Laurence Demaison, 2004.
Mais tarde, porém, indagou-se se tinha ou não sido explorado. E sua angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina com uma cara de horror. O coração batia como um punho. Além do rosto espantado, solto no vidro da vitrina, havia panelas e utensílios de cozinha que ele olhou com certa familiaridade. "Pelo visto, fui", concluiu [...] (Começos de uma Fortuna)


Details of Michelangelo’s masterpiece “David” 1501–1504


Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. "Eu te odeio", disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? [...] Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? [...] não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida (O Búfalo)

Nastya Zhidkova



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