24.10.19

1984 - George Orwell


                1984 é um livro tão famoso e comentado que você quase tem a sensação de já ter lido, por isso também está na lista de "livros que todo mundo diz que leu, mas poucos leram de fato". Então, não se deixe levar por essa sensação de que "já conhece do que se trata": Leia mesmo, pois é sem dúvida um livro que todo mundo (que puder) precisa ler. Há alguns livros que podem perder o brilho ao longo do tempo, mas não creio que isso venha a acontecer com este. Talvez esse ciclo de horror, desesperança e insanidade que a humanidade insiste em repetir faça com que esta seja uma obra que continua atual e marcante geração após geração. George Orwell constrói uma sociedade imersa no caos, presa numa camisa de força, contida pelo medo.
                O sentimento que mais predominou meu contato com 1984 foi medo. Acho que as distopias se alimentam disso, os escritores colocam uma lente de aumento em algo real e o que parece uma ficção científica distante também dá uma sensação arrepiante de que o que lemos pode ser completamente plausível de acontecer, as distopias nos colocam à beira de um abismo: olhamos para baixo, assustados, sem acreditar que aquela descida sepulcral é para onde caminhamos até agora, olhamos para baixo querendo voltar, buscando entender como chegamos aqui, nos perguntando onde erramos e sonhando em recomeçar, mas em 1984 é tarde demais. As distopias também se alimentam dos sonhos, se nesse mundo não houvessem sonhadores ele já teria explodido, pode ter certeza. As distopias te perguntam: você teria coragem para se rebelar? Ler uma distopia hoje é se perguntar "até que ponto serei resistência?" Resistiria a tudo isso se fosse real? Resisto hoje?
                Em 1984, ter esperança é rebeldia, sonhar é rebeldia, amar é rebeldia, desejar alguém é rebeldia. O livro me faz pensar no que realmente importa em um mundo em que te privam da menor liberdade de pensamento. Em muitos momentos fiquei refletindo que construímos uma sociedade que se importa com tanta mesquinharia, que coloca a felicidade em coisas tão supérfluas e materiais, quando o que realmente importa é tão pouco. Quando te privam de toda a liberdade, o que precisamos para sermos felizes é tão simples...
                Decidi fazer esta leitura pelo momento atual no Brasil, apesar de ter terminado a leitura totalmente arrasada emocionalmente, eu achava necessário. Li anteriormente Fahrenheit 451 que tem um mote parecido, mas com um final bem diferente. (tentando não dar spoiler). 1984 se centra nos sentimentos e mecanismos comuns a todas as sociedades que são regidas por um Estado ditatorial e/ou autoritário: controle, poder totalitário, autoritarismo, ódio, medo, manipulação de informações. Alguns pontos são aterrorizantemente parecidos com o que estamos vivendo, como o MINUTO DE ÓDIO. Um momento programado em que a foto do inimigo n.1 do Partido é colocado em vários pontos da cidade e todos são levados a gritarem xingamentos e sentirem muito ódio por ele. Mesmo que você não sinta mesmo ódio, o sentimento coletivo é tão forte que você é levado como um peixe num cardume a esbravejar palavras de ódio. Alguma semelhança com os robôzinhos bolsominions na internet? Outra coisa parece é o fato do Partido modificar as informações constantemente, alterando o  que é verdade e o que mentira, para seus próprios objetivos. Lembrei do período eleitoral e as fake news, assim como o fato de que Bolsonaro sempre tentava voltar atrás em algo que ele dizia, numa tentativa de "apagar o passado" e como muita gente realmente comprava essa manipulação, assim como no livro.
                Eu não sei se George Orwell imaginava que décadas depois em algum lugar do mundo, não somente no ano de 1984, mas em 2019 ainda teríamos uma sociedade tão adoecida como a que ele retratou ou se ele tinha esperança que o livro pudesse despertar as pessoas para impedir isso que ocorrer novamente... mas aqui estamos, e sim, é triste demais.
                E onde está a saída? Me apego a outros sonhadores, nem sempre nos mantemos firmes, de pé. Às vezes podemos "trair" os nossos (trair no sentido que diz no livro). A solução não poderá ser individual, nunca será, a humanidade não vai sobreviver se continuarmos isolados, digladiando. Uma vez fiz um espetáculo que tinha uma cena em que quatro atores passavam um tempo num movimento em que tentávamos nos segurar quando o outro cai, acho que esse é o jogo: não esteja só.
               

21.10.19

Geografia dos Ossos - Nina Rizzi



Você já abriu um livro que te abocanhou inteiro? Você já leu um livro que ruge? Você já leu um livro com garras? Das 1001 coisas que você precisa fazer antes de morrer, eu diria sem sombra de dúvidas que uma delas é ouvir/ler/conhecer/e/ou/fumar um cigarro com Nina Rizzi. Geografia dos Ossos, o livro que supostamente eu me atrevi a comentar nesta plataforma de compartilhamento, foi lançado no Planeta Terra em 2015 e estudos indicam que nosso solo ainda não se recuperou da passagem do fenômeno. 

Enquanto escrevo penso "será que estou exagerando?" e dai eu leio homens falando de homens inflando ego de homens que já passaram da conta em séculos de terem seus sacos e egos inflados e volto "não exagero não". Abro um livro de um homem e leio outro homem dizendo "Ele é o maior"; "O maior blablala da America Latina". Abro o livro de Nina Rizzi e digo "Ela é a maior". Sim, é sim. 

Por que poupamos elogios a escritoras? A nossas escritoras? Por que poupar elogios à Nina Rizzi?  
Mas bem, sobre Geografia dos Ossos... este livro é uma mulher-montanha, foi o que senti. Sabe, daquelas que você vai olhando de longe enquanto percorre a estrada e aos poucos vai se aproximando e aproximando e montanha vai ficando medonha, te engolindo toda... uma montanha que diferente das silenciosas rochas guardando segredos milenares, "nunca aprendi ficar calada, cândida". É poesia que atravessa a carne. É uma mulher que não se adapta, como "os peixeis não se adaptam a barragem". Nina diz que "um verso me martela / abandonar o território conquistado", os seus me martelam todos. Você diz que "o poeta nasceu pronto a ser esquecido", mas você não será Nina, não por mim, não por tantas outras. 


sem título, por ser mulher 

o que é um homem quando uma mulher é puta? 
o que é uma mulher quando um homem goza co’a sua cara? 
o que não somos quando é urgente arder e ardemos? 

num baile de verbos cospem, amam, avexam, riem, 
gozam até que eu seja puta. 
o que são eles quando me fazem puta 
senão machos gente putos? 

eu sou uma puta?


a morte do favelado, réquiem
- motivo para aidan 1.

os buracos vazios de vez
trinta e uma mil balas para pacificação
esturricam no chão
2.
um dia de manhã sentei naquele chão
tão preto tão morto

fechei os olhos garrada em seu sangue seco
e pensei em quem seria
quem foi
ele os invisíveis

abri
como uma refugiada de guerra
uma vaca magra
na fila do abate

3.
 ouço as sirenes indo embora
chegando
como uma marcha de chopin

os pássaros
o que é vivente
estão lá - longe
desse silêncio de mármore

outro carro
mais uma nota na marcha
insinuação de morte

4. perene os vinte um sabores
picolé pipoca algodão doce tapioca
que os meninos se indo
saberão ainda - ausentes

bombas pás
rastros de névoa
aqui acolá
dissipam na floresta de ossos

3.10.19

Um Corpo Negro - Lubi Prates



Eu estou escrevendo esse texto, mas eu sei que é pouco o que eu posso dizer, eu só queria registrar como esse livro é importante para que outras pessoas um dia possam lê-lo porque é preciso, ele precisa estar nas escolas, nas ruas, precisa dançar pelo mundo inteiro.

Ao ler Um corpo Negro, dentre as inúmeras sensasções e reflexões uma que me surge é de que o corpo deste livro, é muito mais do o corpo de um livro. Poesia é voar fora da asa, diz Manoel de Barros. A de Lubi Prates além de voar fora da asa, cria as próprias asas e decola, rasgando o céu, buscando cicatrizar os rasgos de outros tempos...

"é nas minhas costas 
que o rasgo abe e sangra cicatriza
mas permanece"

.... deixando um rastro impossível de esquecer com versos que são feitos de tantos rastros marcados nela de um passado mais antigo que seus anos, é assim que Lubi escreve. Mas não escreve só com mãos:

"meu corpo 
é meu lugar 
de fala

e eu falo
com meus cabelos e
meus olhos e
meu nariz. [...]
e eu falo
com minha raça."

E como ela bem diz "aos que vieram antes, aos que virão, aos que caminham juntos". Dizem que ser escritor é um ato solitário. Quando se trata da escrita negra, não se faz poesia que não seja o eco dos cantos de todos aqueles que cantaram antes e os que não puderam cantar também, não puderam gritar. 
"é nas minhas costas 
que eu guardo a história
do antes  silenciado
do depois traçado no agora"

Clarice diz assim "se á o direito de gritar, então eu grito"; ai Clarice, e quando esse direito foi negado por séculos por gente da nossa cor? É quando Lubi me fala:

"você nunca sentiu uma arma
apontada para sua cabeça
enquanto repetia: é um engano
você não é negro, você sempre
esteve em segurança"

Ao fechar o livro, ecoa a pergunta "quando um corpo negro está completo?". Um corpo negro é um livro baque, chora pela dor acenstral, "onde os mares são feitos de lágrimas", falamos em palavras, mas são números que gritam: 75% das vítimas de homícidio no Brasil são negros; a poesia de Lubi Prates seergue carregando o luto estatístico para criar a força de permanecer viva como um corpo negro junto a outros AINDA VIVAS**, que se fazem continente, imensos:

"nos tornamos maiores
que um continente

apenas como nossos corpos
um sobre o outro"

** "AINDA VIVAS" é o nome do mais recente espetáculo do grupo Nóis de Teatro, daqui de Fortaleza, grupo ourindo da periferia da cidade que tem este e outros trabalhos artísticos lindos e fortes sobre denuncia social e racial.


1.10.19

Boca



A primeira vez que vi a Kah Dantas lançando Boca de Cachorro Louco eu lembro que tive um gatilho pesado. Sai de lá sem comprar o livro e demorei um bom tempo para ter coragem de ler. Na ocasião eu comecei a chorar e achar que meu atual namorado estava mentindo pra mim e escondendo coisas do mesmo jeito que o ex e falando de mim pros amigos dele, que eu era louca. Nada disso estava acontecendo, mas é só pra mostrar que as marcas de uma relação tóxica demora às vezes anos para sarar, é preciso paciência consigo. .
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O livro de Kah conta de forma confessional as idas e vindas de um relacionamento abusivo e um pouco da transição para um novo relacionamento, como é confiar de novo em alguém depois de passar pelo inferno? Como é se permitir amar e ser amada de um jeito bom? Aliás, o amor não era para ser.. bom? .
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Depois que passei por uma relação de 11 meses e vários rolos igualmente tóxicos e ridículos, eu fui aos poucos entendendo como somos ensinadas a aceitar que o sofrimento é amor de verdade. Pra merda com isso! Você não precisa de uma paixão louca e sexual que ao mesmo tempo te machuca e te faz sofrer para chamar isso de amor de verdade. .
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"Boca de cachorro louco" é escrito em capítulos curtos, como se cada um fosse um episódio de uma relação que como a maioria desse tipo começa de um jeito que faz você confundir intensidade com sofrimento. Mas não é uma biografia, e sim, biográfico, uma auto-ficção. Kah mistura relatos com acontecimentos que envolvem outros personagens, relembra também momentos felizes que teve e o erotismo pungente que viveu nesta relação, não tem amarras ao dizer o quanto era envolvida sexualmente com o homem que lhe levou ao céu e puxou para o inferno.
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Percebo na minha própria trajetória que esse cunho sexual forte de relacionamentos tóxicos foi muito presente: resolvemos tudo na cama. É assim que as músicas falam. Mas será?
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E que a lição seja clara: O amor pra ser intenso não precisa te bater, te fazer chorar todos os dias, te deixar louca. Nenhuma dessas 3 opções.

Calibã


Este livro é revolução. Este livro é uma bomba jogada no seu cérebro. É um punhal no peito e ao mesmo tempo um megafone em chamas. Esse livro te sacia e te deixa faminta ao mesmo tempo.
Peço desculpas porque agora não vou poder trazer dados catalográficos e biográficos para incrementar esta resenha.
De onde surgiu este ódio coletivo às mulheres? De onde surgiu esse ódio mútuo que nos alimentou tanto tempo? De onde surgiu a culpa? A proibição? Imagina que séculos depois de uma tentativa em massa de extermínio das mulheres, uma mulher se ergue para não deixar que essa História caia no esquecimento. Não podemos esquecer. Depois dessa tentativa em massa de silenciamento, do outro lado do mundo, um coletivo de mulheres se une para trazer esta obra aos brasileiros. Este livro é uma revolução. Ao lê-lo me sinto parte disso. Parte da consciência do que aconteceu com as mulheres que vieram antes de mim e tento pelo menos entender porquê as coisas são assim. Não há só uma resposta, claro. O caminho que Silvia percorre é uma das razões, são muitos o fatores para tentar explicar a condição irracional que mulheres vivem, mas este livro é um grande começo. Sei que existem mil e um livros para ler antes de morrer, mas coloque agora esse na lista e se possível deixe-o furar a fila.



P.s. colagem inspirada no perfil @liefalei


Resenha: Seja homem (JJ Bola - Editora Dublinense)

Seja Homem é um livro que busca analisar a construção da masculinidade no patriarcado, discutindo como as práticas do que seria “ser um home...