12.2.20

O Apanhador no campo de centeio - J.D. Salinger

"Aqui o que ele disse: A marca de um homem imaturo é que ele quer morrer nobremente por uma causa, enquanto a marca do homem maduro é que ele quer viver humildemente por uma"



O apanhador no campo de centeio foi escrito em meados dos anos 40, e se tornou mundialmente um clássico "fundamental", creio que como dizem os especialistas, ter se detido a tratar de um tema pouco abordado até então: a adolescência, e melhor, pelo próprio viés do adolescente. Por conta disso, o livro tem uma linguagem característica, também pouco usada na literatura, uma narrativa repleta de gírias e coloquialismo, sem se preocupar em trazer uma escrita "nobre".

Comecei a ler the catcher in the rye em Dezembro, peguei emprestado de um amigo, estadunidense e resolvi ler no original sem saber, aliás, que, faria muito diferença. Não li a tradução nova que saiu pela Todavia e está sendo bem elogiada, mas esse é um livro que creio ser outra coisa quando traduzido. 

Pra quem, assim como eu, nunca tinha lido o famoso o apanhador no campo de centeio, vou tentar resumir o enredo (apesar de que eu mesma, nunca quis ler sobre """o que acontece""" nesse livro, pra guardar o gostinho da surpresa e particularmente acho bem sem graça contar os fatos que se desenrolam numa narrativa, porque parto da ideia de que "o que acontece" não resume uma obra, tanto que acho graça quando as pessoas dizem que nada acontece num livro ou filme, presas a uma ideia tradicional de reviravolta, climax e desfecho. Esse por exemplo, é um livro que nada acontece em boa parte da história. 

A história é narrada em primeira pessoa e, Holden Caulfield, nosso odiado protagonista, tem 16, está no ensino médio e foi expulso pela segunda vez da escola, ele iria para casa um pouco depois do Natal (acho que é, viu como não me apego "ao que acontece"), sem que os pais dele soubessem que ele foi expulso de novo. Mas decide sair dias antes e ficar vagando por Nova York, se deprimindo até chegar na decadência máxima que ele poderia chegar. É então, basicamente isso que acontece. Mas como a professora Maria Elisa Cevasco diz: ele fica adiando o momento de dizer que ele é um desajustado

Eu havia demorado a ler esse livro por pura negligência com clássicos e porque um amigo meu falava muito mal do personagem toda vez que eu comentava que queria ler e ficava dizendo pra eu não perder meu tempo. Desculpa, amigo, mas ainda bem que eu não te escutei. É maravilhoso que possamos ler algo para tirar nossas próprias conclusões. Hoje, depois de rever bastante, posso dizer que: amei esse livro, tenho críticas sim, mas podemos gostar de algo e ter críticas a respeito também. 

Primeiro, queria ressaltar que é muito incrível que J.D. conseguiu criar um livro que é basicamente um personagem. O apanhador é sobre Holden, a história é Holden e mesmo que você deteste Holden, J.D. conseguiu dar vida a um personagem que parece tão real que temos todos esses sentimentos muito humanos com relação a ele: ódio, empatia, ranço, abuso, pena, compaixão, etc. Ele criou um personagem que mais de 50 anos depois ainda somos capazes de debater a sua atualidade.

Agora, como eu interpreto Holden Caulfield. De início o narrador, Holden, nos diz que ele não é confiável, essa informação é muito genial, porque a partir do momento em que ele se coloca como não confiável, mas a narrativa é toda conduzida pelas memórias e pelo o que ele escolher narrar, então sabemos que temos uma perspectiva que pode ser meio torta, que pode ser mentira, que pode ser só fruto de um delírio dele, mas é só isso que temos em mãos. 

Holden é um adolescente meio amargurado, que passou por umas bads na vida, mas que também consegue ser muito chato, machista e um pé no saco, o que me faz entendê-lo como: um adolescente de 16 anos, é exatamente isso que J.D. constrói. 

Talvez hoje, depois de lermos tantos personagens "reais demais", tenhamos sede de ler personagens (meninos e homens) que sejam mais legais com as mulheres, que não sejam apenas fruto de uma masculinidade tóxica, que possam mudar e sejam passíveis de mudança. Mas talvez esse não seja o caso nos anos 50, e veja bem, eu não sou nem um pouco a pessoa que justifica machismo pelo contexto histórico, nem estou dizendo que ele é assim mesmo porque tem 16 anos e tá tudo bem. Não tá tudo bem, mas sim, é coerente.  O que em nenhum momento nos impede de enxergarmos que é um defeito, e pela minha interpretação, Salinger não quis dizer que era ok que Holden tivesse esses momentos machistas. 

O que ele coloca pra mim é justamente o quanto ele era miserável e cheio de defeitos e depressivo e tudo mais, mas a grande sacada é: todos os personagens ao redor dele percebem que ele é machista, miserável, depressivo e chato: menos ele mesmo

É difícil acolher um personagem principal que não vai ser um herói perfeito, mas com o toque certo, acredito que é possível construir um bom livro com personagens detestáveis. E não acho que Salinger, a meu ver, até agora, tirando só pelo livro, quis corroborar com todos os defeitos de Holden, pois ele usa a seguinte técnica: colocar um contraponto. 




Bem, sabemos que Holden foi expulso novamente, está com depressão, mas não percebe, e tem um grande desânimo por tudo e todos ao redor, ao mesmo tempo que tenta desesperadamente encontrar algo empolgante para viver e gostar das pessoas e que as pessoas gostem dele, mas ele está tão na merda que acaba sempre ou falando mal de todo mundo, homens e mulheres, ou parecendo muito chato e detestável. 

Eu não tive ódio de Holden, se eu o visse e ele viesse com essas merdas pro meu lado, eu provavelmente iria rir na cara dele, e eu ri muito com esse livro. Porque a grande complexidade é que: Holden critica todo mundo que convive com ele, sem perceber que as pessoas também têm um ponto de vista sobre ele. 

Quando Holden meio que foge da escola que já tinha o expulsado, vai para um hotel qualquer e tudo que ele procura é sentir  alguma coisa muito empolgante com as pessoas, que o faça sair daquele estado de lástima, mas ele não consegue (por causa dele mesmo) e fica todo tempo num ciclo que é: tenta se conectar com alguém, acha todo mundo chato, ele mesmo é um chato, fica depressivo e começa a reclamar dos outros. 

Ele vai ligando para várias pessoas altamente aleatórias e convencendo-as a encontrar com ele para fazer algo, nunca dá certo, ele acaba se mostrando um chato ou percebendo que as pessoas, na visão dele, são chatas e aumentando a angústia que ele sente. Em vários momentos ele disse que tal coisa o deixa depressivo, que ele se sente um lixo, mas também meio que implora para que as pessoas fiquem com ele pois ele se sente sozinho. 

Como eu falei, o que eu achei engraçado, é que Salinger traz essa perspectiva genial: Holden reclama de todo mundo como se ele não tivesse defeitos, numa postura meio boba e imatura, claramente como defesa para não mostrar o quão destruído ele está; ele quer se conectar com alguém de forma sincera, mas ele mesmo não é sincero, ele mente sua idade, mente várias coisas. Então tudo que ele busca nos outros, ele não consegue encontrar nele mesmo. Pra mim, uma típica crise adolescente.

Em dado momento ele vai na casa de um professor que ele gosta (mesmo falando mal do homem, porque ele não quer admitir que tem sentimentos bons pelas pessoas), e o professor dá uma liçãozona de moral, que achei muito interessante. Por esse personagem, é uma pista pra mim que o Salinger não está querendo defender o Holden ou que ele pensa como o Holden.



as partes machistas: bem, primeiro, quando Holden fala sobre estupro, ao dizer que a maioria dos garotos força as meninas a transarem com ele, mas ele Holden não consegue fazer isso e este é o problema. Claramente um menino influenciado por uma sociedade machista, que não só nos anos 50, mas hoje, ainda não consegue entender que NÃO É NÃO. E ai ele acha que é um problema porque ele pensa que deveria ser como os outros garotos (apesar de ele falar mal de todos os outros garotos). Também em todos os encontros que ele tem com mulheres ele acaba objetificando-as, e colocando-as em esteriótipos de fúteis, falsas, essas coisas. A única que ele não vê muito assim é sua vizinha, mas que também é totalmente idealizada, pois ele não consegue encontrar com ela pessoalmente.

A outra personagem feminina é a pessoa mais esperta e madura na vida dele e a única que ele dá ouvidos e ama e respeita: sua irmã mais nova. Você chegou até aqui, teve que aguentar O Reclamão o tempo todo, sendo um pé no saco (ele fala isso de todo mundo, talvez porque ele mesmo seja), mas os diálogos com a irmã tocam lá fundo. E é quando ele percebe que ele que tá destruindo tudo na vida dele, que não é tudo culpa dos outros, que ele é que não gosta de nada, ela dá vários tapas na cara dele e tudo mais. A única outra pessoa que ele admira é também o irmão mais novo dele, que não vou dizer da relação dele porque é spoiler e também diz muito sobre quem o Holden é.

Falando assim, parece só um livro sobre um adolescente birrento, essa também pode ser a sinopse, pois como vemos: é isso que aconteceMas pra mim me permitiu uma análise interessante dessa fase da vida, e eu confesso que eu mesma me vi sendo Holden Caulfield em momentos da minha vida: é uma história sobre quando você está muito mal e não sabe lidar com isso, acaba estragando tudo na vida e por ser muito imaturo desconta nos outros suas frustrações, eu acho que por mais detestável que isso possa parecer, pode acontecer com muita gente.

Esse livro não é sobre justificar as coisas, nem tudo é uma tese para defender ou condenar algo, é sobre essa dinamite de sentimentos que é adolescência, por fim, achei um livro bem sentimental no melhor sentido da palavram, que é rico por trazer toda essa discussão sobre um período da vida, de forma muito íntima, real e vívida.

Todo o descontentamento de Holden parece uma grande implicância boba, mas também vejo que é uma grande virada de chave na vida: quando nos damos conta que nossas expectativas podem se tornar frustantes, quando todo mundo diz pra você se comportar de um jeito e que a vida certinha "do jeito que tem que ser", escola, emprego, amigos, namorados, namoradas são o segredo da felicidade, mas você vai percebendo incompreensivelmente que não é bem assim. Quando nos deparamos tendo que lidar com todas as decepções da vida, inclusive com as decepções em nós mesmos.

Como aponta a professora Maria Luisa novamente, este livro marca um ponto de revolta com o sonho norte americano, no entanto, Holden não prevê uma mudança, não imagina uma mudança, ele apenas odeia tudo, inclusive a si mesmo porque ele também é fruto disso tudo. se revolta, e estagna nesse sentimento, como que um sentimento pré-revolução, mas que não chega a realmente mudar algo. Mas o final aberto do livro, me faz crer, que lemos justamente este pré movimento de mudança em Holden, que pode (ou não), no futuro, resultar em algo maior.




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