Quando criança, quase adolescente, a pequena Selva Almada ouviu no rádio uma notícia sobre o assassinato de uma mulher, ocorrido perto de onde ela morava, esta notícia, mesmo sem todo o raciocínio crítico de mais tarde, já impressionou a escritora, ao imaginar que: ela poderia ter sido a vítima.
Ao longo do livro, que é descrito como jornalismo literário, a escritora argentina escolhe 3 casos de feminicídio (palavra que ainda não é nem reconhecida em todos os dicionários) ocorridos nos anos 80 na Argentina para se questionar sobre as condições de violência que todas as mulheres estão expostas simplesmente por serem mulheres. Os casos relatados são de certa forma "aleatoriamente" escolhidos, poderia ser qualquer um, poderia ser ela mesma, é o que une cada leitora e a própria escritora de forma intima as vítimas desses assassinatos - todos sem resolução até hoje.
Não há uma linearidade na narrativa, a autora entrelaça memórias pessoais, como quando pedia carona no caminho da escola, ou uma história de quando o pai tentou bater na mãe dela, também seus relatos ao decidir escrever o livro e a busca pelos familiares das vítimas ou informações que a fizessem juntar as peças dos casos, mesmo sem nenhuma intenção policial. Em algum momento percebi que ela procurou reviver essas histórias não na tentativa de solucionar algo, que já parecia perdido - ou que na verdade é mais do que encontrar um culpado - um culpado abstrato personificado nos assassinos: patriarcado.
Segundo Christine Delphy e, "Dicionário Crítico de Feminismo":
“Patriarcado” é uma palavra muito antiga, que mudou de sentido por volta do fim do século XIX, com as primeiras teorias dos “estágios” da evolução das sociedades humanas, depois novamente no fi m do século XX, com a “segunda onda” do feminismo surgida nos anos 70 no Ocidente.
Nessa nova acepção feminista, o patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres. Essas expressões, contemporâneas dos anos 70, referem-se ao mesmo objeto, designado na época precedente pelas expressões “subordinação” ou “sujeição” das mulheres, ou ainda “condição feminina”. (fonte: qg feminista)
É a partir dessa noção que Selva Almada vai mostrando que a violência feminina na sociedade patriarcal que vivemos - no mundo todo, em alguns lugares em níveis maiores que os outros - fazem parte do cotidiano de meninas e mulheres de forma extremamente naturalizada. É ao se dedicar a escrever sobre 3 casos já esquecidos e sem solução que a autora tenta resgatar a memória das vítimas e de tantas outras esquecidas pela ideia de que "nada podemos fazer" e dizer: nossas vidas importam!
Quando que meninas começam a ter essa noção de mundo? A ideia assustadora e quase paralisante de que podemos ser a próxima vítima? E não só de um assassinato, podemos ser a próxima vítima de um assédio sexual, de um "fiufiu", de uma coerção sexual, de manipulação psicológica, de estupro, de uma tentativa de estupro, de um soco, de um relacionamento abusivo, de uma sex tape vazada na internet, de uma nude vazada na internet, de uma mentira de cunho sexual que contam por aí, entre tantas outras violências.
Quando tomamos consciência que nascer menina é estar exposta a não pode existir livre? E o que fazer ao saber disso?
Selva Almada não dá nenhuma resposta para isso, e nem pretende. Em Garotas Mortas somos entregues a perguntas e a desolação de se perceber mulher num mundo em que homens querem te violentar na primeira oportunidade que tiverem.
E não há quem ouse dizer que isso é exagero, é só dedicar 10 minutos a pesquisar que você poderá encontrar que hoje mesmo, uma mulher sofreu algum tipo de violência, é só perguntar a qualquer mulher próxima que você terá um relato de algum tipo de violência que ela tenha sofrido, seja sutil ou não. Mas homens também sofrem violência, alguns desonestos insistem em dizer, mas não sofrem por simplesmente nascerem homens.
O ponto negativo que achei do livro é que pra mim, ela poderia ter se debruçado a uma análise mais profunda e crítica sobre o feminicídio e o machismo cotidiano. Como o livro acaba levando um tom muito subjetivo e até poético, a autora acaba deixando de se posicionar mais em alguns momentos, ela expões detalhes que imagina sobre os momentos da morte o que dá uma sensação apenas de "choque", é preciso em obras como esta, que são criadas como manifesto contra isso, que seja claro como vivemos numa sociedade totalmente contaminada pelo machismo e como isso que leva a morte de mulheres.
O final também é bastante desolador, como já disse, Selva Almada conclui que só estamos vivas por pura sorte, o que não deixar de ter sua verdade, mas também precisamos nos apegar a esperança de que podemos lutar de alguma forma enquanto estamos vivas. Inclusive decidir escrever um livro sobre isso é uma forma de não estar viva apenas desejando não morrer na próxima esquina.
Achei o livro importante, mas faço essas considerações, devemos ler Garotas Mortas como um manifesto contra o silêncio, estamos vivas e vamos fazer barulho.
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