5.8.18

[Impressão] Náutico - Vitória Régia

Pra mim, a poesia não é um gênero literário, é um modo de viver, ver o mundo. Pelos olhos do poeta podemos enxergar imagens com outras cores, outros cheiros, outras formas. Um verso é um caminho de pés na areia, cada caminho é único. Não foi fácil tentar enxergar pelos olhos de Vitória Régia. Li e reli os poemas algumas vezes, existia algo turvo, neblina que instigava mas assustava.  

"Isto tudo é memória", avisa a poeta em seu terceiro poema. Um livro se faz de imagens que não conseguimos descartar, "até de olhos fechados". E a poeta é aquela que consegue absorver nos milésimos de segundo um momento despercebido. 

Foto: Jamille Queiroz

Se há terra à vista em Náutico, essa terra é feita dos grãos das lembranças. Na última página do livro há uma definição que diz: "Náutico pode ser o lugar físico ou afetivo por onde transeuntes percorrem incertos", a voz dos versos (ela mesmo, a poeta, avisa que) não hesita, durante a respiração das grandes braçadas, a pular em mar aberto. 

Durante a leitura de Náutico, sentia que cada verso era um clique de uma máquina fotográfica mental que guarda as instantes para que sejam revividas toda vez que percorrermos novamente os lugares marcantes de nossa vida. Esses instantes são carne, são efêmeros, são fumaça de ausência.

Talvez Náutico seja o livro de algo que partiu e mas permanece na língua como uma mordia dada sem intenção, mas impossível de esquecer por algumas horas. O livro também rememora o imprevisível.


"Daremos passos cautelosos ou seremos breves
Para o resto das causas que não pudermos calcular
Sinal quebrado provoca acidente no tráfego às três"


Imprevisto que geram "impensáveis territórios" , e a poesia se torna esse lugar de encaixar peças que não se encaixam, mas nos versos podem ser eternos. A poesia é este cais onde "átrios se unem na cadência da memória" / "acaso surdos para rotas abertas". O que nos mostra o acaso? Que acordes surdos são esses? Acordes que não esquecemos, fazemos poemas para não lembrarmos.

Os poemas de Náutico trazem versos que nem sempre se interligam, talvez diferente de uma poesia convencional, cada versos é um golpe único em cada parte do corpo "na precisão de punhal". O todo o leitor une com o que sente.

O imprevisto também abre espaço para o excesso, palavra que surge em alguns momentos durante a leitura dos 40 poemas que compõem o segundo livro de Vitória Régia.
"excesso de colheitas", ela afirma.

Foto: Jamille Queiroz

Apesar da referência ao mar, mãos é a palavra que aparece com mais frequência nos poemas de Náutico. No oitavo poema eles andam "de mãos frágeis" e no décimo terceiro buscam "os pontos equidistantes / E que as mãos eram capazes de traçar". e no décimo sétimo o sangue escorre pelas linhas da mão do amante. As diversas outras imagens que a poeta esculpe nos mostra as mãos espumas, mãos de linhas, mãos trêmulas, mãos que tocam, mão que se despedem vazias, mãos que operam milagres, mãos que bagunçam cabelos, mãos que chafurdam sobretudo, a pele que arde.

Vitória traz o erotismo das noites misteriosas, e os rostos se confundem com alguma paisagem, onde a "pele trêmula", hesita, encontra, se entrega a "choques internos", dança e o amor tem o "poder de me invadir / Por todos os buracos". A pele se eriça, toda "escamando da tua pele / que se atordoa no mar",  no campo minado, nossos olhares atiram "mísseis da pele em quatro direções". A pele é ânsia, vulcão, e tem gosto de sal e um cheiro.. ah um "cheiro que dói no corpo".

Vitória Régia explora sobretudo esse mar-corpo e todas as suas partes: olhos, respiração, odor, luz, movimento das pernas, barulho, cor, textura, "pés em desatino", com frenesi de quem não reza de joelhos em maré alta, mas faz da poesia essa oração onde só nela é possível levantar as velas da embarcação dos sentidos.

Foto: Jamille Queiroz



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