14.3.20

[Resenha] O perseguidor - Júlio Cortázar

Achei que fosse fácil e rápido falar de O Perseguidor, mas agora me deparo diante de uma tarefa um pouco mais complicada.

o que é: O Perseguidor é um conto do argentino Júlio Cortázar, publicado em 1959 na coletânea As Armas Secretas, mas que no Brasil também ganhou uma edição exclusiva pela editora CosacNaify, com ilustrações especiais do também argentino José Muñoz. 

contexto: Córtazar era um grande fã de jazz, inclusive tocava trompete. Neste conto ele faz uma homenagem ao saxofonista estadunidense Charlie Parker, grande lenda que revolucionou o jazz nos anos 50, inaugurando o bepop. Parker era conhecido como "Bird" (Pássaro), morreu com apenas 34 anos, infelizmente a conhecida combinação de viva rápido, morra jovem e seja um gênio que os EUA tanto amam; o músico entrou pra história e fez a cabeça de uma geração, é um pouco sobre essa intensidade de Parker que Júlio trata aqui, mas não só sobre isso... claro.


a história: O Perseguidor vai contar o período final da vida de Johnny, um saxofonista famoso e genial, mas com muitos problemas internos e viciado em drogas; Bruno é o narrador em primeira pessoa, biógrafo e amigo de Johnny. Com uma linguagem e ritmo frenéticos como uma caçada à noite, adentramos ao mundo caótico da mente de Johnny e de outros personagens; este conto não é somente para amantes de Jazz para todos que busquem uma leitura reflexiva e empolgante sobre estar numa encruzilhada existencial. 



Um pouco mais

Bruno é um crítico de música, amigo e biógrafo de Johnny, ele escreveu recentemente uma biografia sobre o músico e durante os dias em que volta a conviver intensamente com Johhny vai refletindo sobre seu próprio trabalho como biógrafo ao mesmo tempo que tenta adentrar compreender o universo desconexo no qual a mente de Johnny se encontra no período de recorte do conto. A impressão que tive é que às vezes ele oscila entre "defender", apoiar e admirar Johnny, e outras em que parece ficar observando praticamente o amigo cair do penhasco para assim poder ter uma boa história. 

"Não é nenhuma exceção, aparentemente. Qualquer um pode ser como Johnny, sempre que aceite ser um pobre-diabo doente e viciado e sem vontade e cheio de poesia e talento"

Johnny é um jazzista genial, mas com muitos problemas mentais, tem depressão, já havia tentado suicídio antes e é viciado em drogas: um combo conhecido e até meio romantizado. Não fica claro qual, falam bastante de maconha, mas no meu pouco entendimento só a maconha não causa o estado no qual o personagem é descrito. Ele está totalmente perdido da cabeça, no início do conto em que Bruno vai ao hotel que Johnny, este está num estado lamentável e tenta estabelecer alguma comunicação, mas sua mente sempre vaga por assuntos e imagens incompressíveis para os outros.


Pelo que podemos entender, Johnny havia passado um período limpo das drogas, mas em Paris voltou a usar, Bruno tenta descobrir com quem ele havia conseguido. Ao voltar com as drogas Johnny se torna imprevisível e parece quase viver em uma realidade paralela. Todos ficam a espera de um lampejo de lucidez para que ele crie algo ou aterrize. 


Ao mesmo tempo que tive a impressão que todo mundo fosse meio sanguessuga dele e ninguém pudesse de fato ajudá-lo (porque também claro, se alguém podia tirá-lo daquela depressão era ele mesmo, ao que parece também ser algo difícil).



Dédée é a atual namorada de Johnny uma coitada que é colocada totalmente em segundo plano. Ela é colocada no conto só pra viver em função do música e nada mais, passa 24h preocupada com ele e cuidando dele e inclusive ele ainda confessa a Bruno que nem gosta tanto dela. É um típico retrato de uma relação tóxica, mas que vê a total falta de amor próprio dessa jovem que romantizou esse músico genial e se vê importante por cuidar da vida dele esquecendo a sua própria.

Sobre isso, apesar de ter gostado muito do conto, é um conto de um homem sobre um homem, e eu nem esperava algum protagonismo feminino, porém, pra mim, também revela a brotheragem e machismo na arte que é ABSURDAMENTE COMUM. Muitas mulheres (eu já fui uma dessas), cai no conto de fadas do artista sensível e descolado achando que são diferentes de qualquer machão conservador pai de família, mas acabam sendo tratadas do mesmo jeito que qualquer homem opressor as trataria. Inclusive vai sendo revelado que Johnny já foi casado antes, tem dois filhos, fez alguma merda com a ex e não dá a mínima pra esses filhos. "Ah, mas ele é um viciado depressivo, não tem condições de cuidar nem de si". Fato, porém, isso é muitas vezes como romantizam homens passando por problemas que fazem merda e são péssimos pais, mas ficam marcados na história pela genialidade artística, mas o mesmo não ocorre com as mulheres que escolhem se dedicam as suas carreiras, ou estão passando por problemas psicológicos que as consomem deixando a maternidade em segundo plano. Temos como exemplo Nina Simone, que no documentário que foi lançado pela Netflix, conduzido pela filha dela, eu vi muita amargura da filha com relação a mãe por ela ter se dedicado tanto à carreira; outras como Elis Regina, Maísa, Nico e todas as mulheres que são mães e tem problemas com drogas são retratadas como se estivessem "fugindo do papel de mães", mas com homens isso é naturalizado. De fato, o que significa ser pai nessa sociedade né?
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Existem outros personagens secundários como a marquesa que é uma amante de Johnny, muito rica e também fornecedora das drogas que ele usa. 
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Eu amo a escrita de Cortázar, e neste conto percebe-se que ele se desafiou a construir uma linguagem que se aproximasse do bepop (um estilo de jazz fundado por Charlie Parker, um pouco mais rápido do que se costumava ouvir na época). Ele consegue passar para o leitor toda essa crise existencial depressiva que Johnny está atravessando, ao mesmo tempo que o próprio narrador começa a se questionar sobre o sentido da sua vida e do seu trabalho, refletindo sobre como a obra de arte de uma pessoa pode tocar tantas outras, mas por vezes vem de uma mente tão feroz que nem o próprio artista consegue enxergar a beleza do que faz. Me mostra também como é desesperador estar ao lado de uma pessoa nesse estado, e sabendo que só ele/ela mesmo(a) pode se salvar, mas me faz ficar atenta a não romantizar nada disso, e perceber que por conta de tanta glamourização da fama numa mente depressiva pode alto destruidor também. 

"Seria como viver preso a um para-raios em plena tormenta e crer que não vai acontecer nada."

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