13.5.18

Fichamento - O Segundo Sexo - Introdução



Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve. Isso significa que a palavra “mulher” não tem nenhum conteúdo?

Se a função de fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusamos também a explicá-la pelo “eterno feminino” e se, no entanto, admitimos, ainda que provisoriamente, que há mulheres na Terra, teremos que formular a pergunta: o que é uma mulher?

O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos “os homens” para designar os seres humanos, tendo-se assimilado ao sentido singular do vocábulo latino vir o sentido geral do vocábulo homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade

Nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si. Bastam três viajantes reunidos por acaso num mesmo compartimento para que todos os demais viajantes se tornem “os outros” vagamente hostis. Para os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugarejo são “outros” e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes de outro país são considerados “estrangeiros”.


Como se entende, então, que entre os sexos essa reciprocidade não tenha sido colocada, que um dos termos se tenha imposto como o único essencial, negando toda relatividade em relação a seu correlativo, definindo este como a alteridade pura? Por que as mulheres não contestam a soberania do macho? Nenhum sujeito se define imediata e espontaneamente como o inessencial; não é o Outro que se definindo como Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher?

Mas as mulheres não são uma minoria; há tantos homens quantas mulheres na Terra.

[...] a introdução da escravidão na América, as conquistas coloniais são fatos precisos. Nesses casos, para os oprimidos, houve um passo à frente: têm em comum um passado, uma tradição, por vezes uma religião, uma cultura. Nesse sentido, a aproximação estabelecida por Bebel entre as mulheres e o proletariado seria mais lógica: os proletários tampouco estão em estado de inferioridade e nunca constituíram uma coletividade separada. Entretanto, na falta de um acontecimento, é um desenvolvimento histórico que explica sua existência como classe e mostra a distribuição desses indivíduos dentro dessa classe. Nem sempre houve proletários, sempre houve mulheres. Elas são mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica; por mais longe que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu.

[...] a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica; só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram; elas receberam [...] Não têm passado, não têm história nem religião própria; não têm, como os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses [...] Vivem dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens — pai ou marido — mais estreitamente do que a outras mulheres.

O proletariado poderia propor-se o trucidamento da classe dirigente; um judeu, um negro fanático poderiam sonhar com possuir o segredo da bomba atômica e constituir uma humanidade inteiramente judaica ou inteiramente negra: mas mesmo em sonho a mulher não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico, e não um momento da história humana. É no seio de um mitsein original que sua oposição se formou e ela não a destruiu. O casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte por sexos é possível na sociedade. Isso é o que caracteriza fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro.

Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições. No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens. Eles bem o sabem, elas mal duvidam. Recusar ser o Outro, recusar a cumplicidade com o homem seria para elas renunciar a todas as vantagens que a aliança com a casta superior pode lhes conferir.

O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará, nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como sujeito porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.

a. Resta explicar por que o homem venceu desde o início. Parece que as mulheres poderiam ter sido vitoriosas. Ou a luta poderia nunca ter tido solução. Por que este mundo sempre pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar? Será um bem essa mudança? Trará ou não uma partilha igual do mundo entre homens e mulheres?

o simples fato de ser a mulher o Outro contesta todas as justificações que os homens lhe puderam dar: eram-lhes evidentemente ditadas pelo interesse. “Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte”, escreveu, no século XVII, Poulain de la Barre, feminista pouco conhecido.

Um dos benefícios que a opressão assegura aos opressores é de o mais humilde destes se sentir superior: um “pobre branco” do sul dos Estados Unidos tem o consolo de dizer a si próprio que não é “um negro imundo”, e os brancos mais ricos exploram habilmente esse org`ulho. Assim também o mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres.

Para todos os que sofrem de complexo de inferioridade, há nisso um linimento milagroso: ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade.

O homem pode, pois, persuadir-se de que não existe mais hierarquia social entre os sexos e de que, grosso modo, através das diferenças, a mulher é sua igual. Como observa, entretanto, algumas inferioridades — das quais a mais importante é a incapacidade profissional —, ele as atribui à natureza. 

Mesmo o homem mais simpático à mulher nunca lhe conhece bem a situação concreta. Por isso não há como acreditar nos homens quando se esforçam por defender privilégios cujo alcance não medem. Não nos deixaremos, portanto, intimidar pelo número e pela violência dos ataques dirigidos contra a mulher, nem nos impressionar com os elogios interesseiros que se fazem à “verdadeira mulher”; nem nos contaminar pelo entusiasmo que seu destino suscita entre os homens que por nada no mundo desejariam compartilhá-lo.  

Muitas mulheres de hoje, que tiveram a sorte de ver-lhes restituídos todos os privilégios do ser humano, podem dar-se ao luxo da imparcialidade; sentimos até a necessidade desse luxo. Não somos mais como nossas predecessoras: combatentes. De maneira global ganhamos a partida. Nas últimas discussões acerca do estatuto da mulher, a ONU não cessou de exigir que a igualdade dos sexos se realizasse completamente, e muitas de nós já não veem em sua feminilidade um embaraço ou um obstáculo; muitos outros problemas nos parecem mais essenciais do que os que nos dizem particularmente respeito; e esse próprio desinteresse permite-nos esperar que nossa atitude seja objetiva.

 em que o fato de sermos mulheres terá afetado a nossa vida?

Mas não confundimos tampouco a ideia de interesse privado com a de felicidade, ponto de vista que se encontra frequentemente. As mulheres de harém não são mais felizes do que uma eleitora? Não é a dona de casa mais feliz do que a operária? Não se sabe muito precisamente o que significa a palavra felicidade, nem que valores autênticos ela envolve. Não há nenhuma possibilidade de medir a felicidade de outrem e é sempre fácil declarar feliz a situação que se lhe quer impor. Os que condenamos à estagnação, nós os declaramos felizes sob o pretexto de que a felicidade é a imobilidade.

Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? Que caminhos lhe são abertos? Quais conduzem a um beco sem saída? Como encontrar a independência no seio da dependência? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais pode ela superar? [...] Isso quer dizer que, interessando-nos pelas oportunidades dos indivíduos, não as definiremos em termos de felicidade, e sim em termos de liberdade.

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