Se hoje não há mais feminilidade, é porque nunca houve. Isso significa
que a palavra “mulher” não tem nenhum conteúdo?
Se a função de fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusamos
também a explicá-la pelo “eterno feminino” e se, no entanto, admitimos, ainda
que provisoriamente, que há mulheres na Terra, teremos que formular a
pergunta: o que é uma mulher?
O homem representa a um tempo o positivo
e o neutro, a ponto de dizermos “os homens” para designar os seres humanos,
tendo-se assimilado ao sentido singular do vocábulo latino vir o sentido geral do
vocábulo homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda
determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade
Como se
entende, então, que entre os sexos essa reciprocidade não tenha sido colocada,
que um dos termos se tenha imposto como o único essencial, negando toda
relatividade em relação a seu correlativo, definindo este como a alteridade
pura? Por que as mulheres não contestam a soberania do macho? Nenhum
sujeito se define imediata e espontaneamente como o inessencial; não é o Outro
que se definindo como Outro define o Um; ele é posto como Outro pelo Um
definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso
que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher?
Mas as mulheres não são uma minoria; há tantos homens quantas mulheres na Terra.
[...] a introdução da escravidão na América, as conquistas coloniais são fatos
precisos. Nesses casos, para os oprimidos, houve um passo à frente: têm em
comum um passado, uma tradição, por vezes uma religião, uma cultura. Nesse
sentido, a aproximação estabelecida por Bebel entre as mulheres e o
proletariado seria mais lógica: os proletários tampouco estão em estado de
inferioridade e nunca constituíram uma coletividade separada. Entretanto, na
falta de um acontecimento, é um desenvolvimento histórico que explica sua
existência como classe e mostra a distribuição desses indivíduos dentro dessa
classe. Nem sempre houve proletários, sempre houve mulheres. Elas são
mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica; por mais longe que se remonte
na história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é
consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu.
[...] a ação das
mulheres nunca passou de uma agitação simbólica; só ganharam o que os homens
concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram; elas receberam [...] Não têm passado, não têm história nem religião própria; não têm,
como os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses [...] Vivem dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo
trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens —
pai ou marido — mais estreitamente do que a outras mulheres.
O proletariado poderia propor-se o
trucidamento da classe dirigente; um judeu, um negro fanático poderiam sonhar
com possuir o segredo da bomba atômica e constituir uma humanidade
inteiramente judaica ou inteiramente negra: mas mesmo em sonho a mulher não
pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é
comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado
biológico, e não um momento da história humana. É no seio de um mitsein original
que sua oposição se formou e ela não a destruiu. O casal é uma unidade
fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra:
nenhum corte por sexos é possível na sociedade. Isso é o que caracteriza
fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade cujos dois
termos são necessários um ao outro.
Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do
homem, ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em
igualdade de condições. No momento em que
as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é
ainda um mundo que pertence aos homens. Eles bem o sabem, elas mal duvidam.
Recusar ser o Outro, recusar a cumplicidade com o homem seria para elas
renunciar a todas as vantagens que a aliança com a casta superior pode lhes
conferir.
O homem que
constitui a mulher como um Outro encontrará, nela, profundas cumplicidades.
Assim, a mulher não se reivindica como sujeito porque não possui os meios
concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem
sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu
papel de Outro.
a. Resta explicar por
que o homem venceu desde o início. Parece que as mulheres poderiam ter sido
vitoriosas. Ou a luta poderia nunca ter tido solução. Por que este mundo sempre
pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar? Será um bem essa
mudança? Trará ou não uma partilha igual do mundo entre homens e mulheres?
o simples fato de ser a mulher o Outro contesta todas as
justificações que os homens lhe puderam dar: eram-lhes evidentemente ditadas
pelo interesse. “Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser
suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte”, escreveu, no século XVII,
Poulain de la Barre, feminista pouco conhecido.
Um dos benefícios que a
opressão assegura aos opressores é de o mais humilde destes se sentir superior:
um “pobre branco” do sul dos Estados Unidos tem o consolo de dizer a si próprio
que não é “um negro imundo”, e os brancos mais ricos exploram habilmente esse
org`ulho. Assim também o mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante
das mulheres.
Para todos os que sofrem de complexo de inferioridade, há
nisso um linimento milagroso: ninguém é mais arrogante em relação às mulheres,
mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade.
O homem pode, pois, persuadir-se de que não existe mais
hierarquia social entre os sexos e de que, grosso modo, através das diferenças, a
mulher é sua igual. Como observa, entretanto, algumas inferioridades — das quais
a mais importante é a incapacidade profissional —, ele as atribui à natureza.
Mesmo o homem mais simpático à mulher nunca lhe conhece
bem a situação concreta. Por isso não há como acreditar nos homens quando se
esforçam por defender privilégios cujo alcance não medem. Não nos deixaremos,
portanto, intimidar pelo número e pela violência dos ataques dirigidos contra a
mulher, nem nos impressionar com os elogios interesseiros que se fazem à
“verdadeira mulher”; nem nos contaminar pelo entusiasmo que seu destino suscita
entre os homens que por nada no mundo desejariam compartilhá-lo.
Muitas mulheres de hoje, que tiveram a sorte de ver-lhes
restituídos todos os privilégios do ser humano, podem dar-se ao luxo da
imparcialidade; sentimos até a necessidade desse luxo. Não somos mais como
nossas predecessoras: combatentes. De maneira global ganhamos a partida. Nas
últimas discussões acerca do estatuto da mulher, a ONU não cessou de exigir
que a igualdade dos sexos se realizasse completamente, e muitas de nós já não
veem em sua feminilidade um embaraço ou um obstáculo; muitos outros
problemas nos parecem mais essenciais do que os que nos dizem particularmente
respeito; e esse próprio desinteresse permite-nos esperar que nossa atitude seja
objetiva.
em que o
fato de sermos mulheres terá afetado a nossa vida?
Mas não confundimos tampouco a
ideia de interesse privado com a de felicidade, ponto de vista que se encontra
frequentemente. As mulheres de harém não são mais felizes do que uma
eleitora? Não é a dona de casa mais feliz do que a operária? Não se sabe muito
precisamente o que significa a palavra felicidade, nem que valores autênticos ela
envolve. Não há nenhuma possibilidade de medir a felicidade de outrem e é
sempre fácil declarar feliz a situação que se lhe quer impor. Os que condenamos
à estagnação, nós os declaramos felizes sob o pretexto de que a felicidade é a
imobilidade.
Como pode realizar-se um ser humano dentro da
condição feminina? Que caminhos lhe são abertos? Quais conduzem a um beco
sem saída? Como encontrar a independência no seio da dependência? Que
circunstâncias restringem a liberdade da mulher, e quais pode ela superar? [...] Isso quer dizer
que, interessando-nos pelas oportunidades dos indivíduos, não as definiremos em
termos de felicidade, e sim em termos de liberdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário