27.10.15

Onde Estivestes de Noite

Admiro quem sabe resenhar Clarice, cada término de leitura é como se eu saísse de um quase afogamento, em que só sei respirar respirar respirar, não me pergunte se estou bem. Clarice abre o mar para que entremos nele e o fecha acima de nós, flutuamos dentro desse oceano por águas por vezes límpidas por vezes obscuras, cantos escondidos de nós que nem mesmos sabíamos existir, outros que precisávamos de alguém para expôr. Mas é preciso estar atento, é preciso estar aberto, é preciso não ter medo de ter medo, é preciso querer mergulhar. Acho que depois dessa leitura posso dizer que tenho ciúme de Clarice, porque não sei se são todos que se entregam assim, e ela não merece nada menos que isso.

Os 17 contos são: (em negrito os favoritos - como escolher?)

1. A procura de uma dignidade
2. A partida do trem
3. Seco estudo de cavalos
4. Onde estivestes de noite
5. O relatório da coisa
6. O manifesto da cidade
7. As maniganças de Dona Frozina
8. É para lá que eu vou (Preferido)
9. O morto no mar de Ucra
10. Silêncio
11. Esvaziamento
12. Uma tarde plena
13. Um caso complicado
14. Tanta mansidão
15. As águas do mar
16. Tempestade de almas
17. Vida ao natural

Trechos favoritos:

"Então seguiu por um corredor sombrio. Este a levou igualmente a outro mais sombrio. [...] E aí esse corredor a levou a outro que a levou por sua vez a outro [...] Então continuou automaticamente a entrar pelos corredores que sempre davam para outros corredores. [...] Ela quis explicar que sua vida era assim mesmo, mas nem sabia o que queria dizer com "assim mesmo" nem com "sua vida [...] Foi então que a Sra. Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua ida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma! porta! de saiiiiiiída!" (a procura de uma dignidade)

"Aquela que de noite gritava "estou em espera, em espera", de manhã, toda desgrenhada disse para o leite na leiteira que estava no fogo: - Eu te pego, seu porcaria! Quer ver se tu te mancas e ferves na minha cara, minha vida é esperar. É sabido que se eu desviar um instante o olhar do leite, esse desgraçado vai aproveitar para ferver e entornar. Como a morte que vem quando não se espera. Ela esperou, esperou e o leite não fervia. Então, desligou o gás. pg 55/56 (onde estivestes de noite) 

Estou melancólica porque estou feliz. Não é paradoxo. Depois do ato do amor não dá uma certa melancolia? A da plenitude.” "Será que também estou ficando assim, sem sentimento de amor? Sou uma coisa? Sei que estou com pouca capacidade de amar. Minha capacidade de amar foi pisada demais, meu Deus. Só me resta um fio de desejo. Eu preciso que se fortifique. Porque não é como você pensa, que só a morte importa. Viver, coisa que você não conhece porque é apodrecível - viver apodrecendo importa muito. Um viver seco: um viver o essencial" Pág. 58 (O relatório da coisa) 

"como é cavo este coração no peito da cidade" pg. 65 (o manifesto da cidade)

"Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós." (É para lá que eu vou)

"O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar" (vida ao natural)

"Sabe que está brilhando de água , e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano." (As águas do mar)


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