O que a arte pode fazer no horror de uma catástrofe? Não tenho resposta.
Mas enquanto lia Vozes de Tchernóbil minha mente borbulhava em imagens, que nunca irei saber de fato o que causavam. Me sinto invadindo a dor de pessoas que viveram aquilo ao pensar nessas imagens. Tive vontade até de montar um espetáculo, mesmo sobre algo tão distante de mim, logo desistir quando vi essa declaração:
"Nunca montarei um espetáculo sobre Tchernóbil, assim como nunca pus em cena nenhuma peça sobre a guerra. Nunca terei em cena um homem morto. Nem mesmo um animal ou um pássaro morto. [...] A guerra deveria ser mostrada como algo tão pavoroso que provocasse vômito nas pessoas. Que pusesse as pessoas doentes. Ela não é um espetáculo [...] Fiz uns esboços de cenas sobre a guerra. Experimentei fazer algo com eles, mas nunca deu em nada. Nunca montarei uma obra sobre a guerra. Não me sai nada."
-- Lília Mikháilovna Kuzmenkova,
professora da Escola de Arte e Cultura de Moguilióv e diretora de teatro
No entanto, ainda resolvi reunir aqui algumas imagens que me ficaram do livro:
"É difícil explicar o que é uma guerra a uma pessoa que nunca a viu… Que só viu essas coisas no cinema…"
"É tão fácil deslizar para a banalidade. Para a banalidade do horror. Mas olho para Tchernóbil como para o início de uma nova história; Tchernóbil não significa apenas conhecimento, mas também pré-conhecimento, porque o homem pôs em discussão a sua concepção anterior de si mesmo e do mundo [...] Tchernóbil é antes de tudo uma catástrofe do tempo [...] Quanto a mim, eu me dedico ao que chamaria de história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo. Escrevo os relatos da cotidianidade dos sentimentos, dos pensamentos e das palavras. Tento captar a vida cotidiana da alma. A vida ordinária de pessoas comuns. Aqui, no entanto, nada é ordinário: nem as circunstâncias nem as pessoas que, obrigadas pelas circunstâncias, colonizaram esse novo espaço, vindo a assumir uma nova condição. Tchernóbil para elas não é uma metáfora ou um símbolo, mas a sua casa. " (Entrevista da autora consigo mesma sobre a história omitida e sobre por que Tchernóbil desafia a nossa visão de mundo pg. 30,31)
“O que a experiência de Tchernóbil nos deu? Terá nos conduzido a esse mundo secreto e silencioso dos ‘outros’? [...] Gostaríamos de esquecer Tchernóbil, porque diante dele a nossa consciência capitula. É uma catástrofe da consciência. O mundo das nossas representações e valores explodiu. Se tivéssemos vencido Tchernóbil ou compreendido o fenômeno até o fim, pensaríamos e escreveríamos mais a respeito. E assim, vivemos em um mundo enquanto nossa consciência vive em outro. A realidade resvala, não cabe no homem." pg 36
Harry Ally - Study for Two Arms (2013) |
“Antes de tudo, em Tchernóbil se recorda a vida ‘depois de tudo’: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para lugar nenhum, cabos para parte alguma. Você se pergunta o que é isso: passado ou futuro? “Algumas vezes, parece que estou escrevendo o futuro…” pg 37
TRÊS MONÓLOGOS SOBRE UM ANTIGO TERROR, E SOBRE POR QUE O
HOMEM CALAVA ENQUANTO AS MULHERES FALAVAM
"Uma coisa que eu… que eu gostaria que você soubesse. Eu não temo a Deus. Tenho medo é dos homens." pg 62
Os robôs não aguentavam o trabalho, as máquinas ficavam loucas. Mas nós trabalhávamos. Às vezes descia sangue dos ouvidos, do nariz. A garganta ficava irritada, os olhos ardiam. Surgia um ruído constante e monótono nos ouvidos. Tínhamos sede, mas nenhum apetite. pg 70
Todos tinham uma expressão de loucura no rosto. Os camponeses tinham, mas nós também. pg 72
"A cidade estava rodeada por duas voltas de arame farpado, como nas fronteiras federais. Casas limpas e de vários andares, ruas cobertas por camadas de areia grossa, com árvores serradas. Quadros de um filme de ficção científica. Cumpríamos ordens: “lavar” a cidade e substituir o solo contaminado até uma profundidade de vinte centímetros por aquela camada de areia. Não havia dias de folga. Como na guerra." pg 81
Coro de soldados
Os campos, que se estendiam até o horizonte, estavam cobertos por dolomita branca. Haviam retirado e enterrado a camada superior contaminada da terra, e em seu lugar cobriram tudo com areia de dolomita. É como se não fosse a Terra, como se não fosse na Terra. [...]
Li sobre Hiroshima e Nagasaki, vi documentários. É pavoroso, mas compreensível: uma guerra nuclear, o rádio da explosão. Isso eu até podia imaginar. Mas o que aconteceu conosco… Para isso me faltava… me faltavam conhecimentos, e faltavam em todos os livros que eu havia lido na minha vida. Eu acabava de regressar de uma viagem de trabalho, estava perplexo olhando as minhas estantes de livros no escritório. Eu li… Se não tivesse lido… Uma coisa totalmente desconhecida destruía o meu mundo anterior. Era algo que se introduzia, que penetrava em você. À margem da sua vontade. pg 115
Os pescadores encontram cada vez mais peixes anfíbios, que podem viver na água e na terra. Andam pela terra sobre as nadadeiras, que servem de patas. Começaram a pescar lúcios sem cabeça e sem nadadeira. Nadavam com o tronco. Algo parecido começará a acontecer com as pessoas. Os bielorrussos vão se converter em humanoides. pg 120
Can Pekdemir |
Por um lado, a nossa civilização é antibiológica, o homem é o maior inimigo da natureza, e por outro, é um criador. Transforma o mundo. Cria, por exemplo, a torre Eiffel e as naves espaciais. Só que o progresso exige vítimas, e quanto mais longe for, mais vítimas serão. Não menos que a guerra, isso hoje está claro. A contaminação do ar, o envenenamento do solo. Os buracos na camada de ozônio. O clima da Terra está mudando. E nós nos horrorizamos. Mas o conhecimento em si não pode ser culpado ou incriminado. Do acidente de Tchernóbil, quem é culpado: o reator ou o homem? Sem dúvida o homem. pg 132
NA VIDA AS COISAS TERRÍVEIS OCORREM EM SILÊNCIO E DE FORMA NATURAL
"Tchernóbil é uma catástrofe da mentalidade russa. Você nunca pensou nisso? Certamente estou de pleno acordo com os que escrevem que não foi o reator que explodiu, mas todo o sistema anterior de valores. Mas essa explicação ainda não me é suficiente." pg 175