26.12.16

A Garota da Banda, um livro não tão feminista assim




Na orelha detrás do livro "A Garota da Banda", o jornalista Alexandre Matias afirma que o livro "é um libelo feminista em forma de relato, que mostra que, mesmo que tenhamos evoluído nesses termos, ainda há muito caminho ela frente. E Kim Gordon sabe o quanto isso é recompensador." Será que sabe, Kim?

O intuito aqui não é atacar nem defender Kim Gordon, ela não está num julgamento, mas sim pontuar alguns incômodos pessoais que tive durante a leitura com algumas declarações da artista e observar uma certa contradição por o livro estar sendo vendido como um "libelo feminista", enquanto Kim escorrega em várias partes com relação a isso.

Antes de realmente chegar ao que quero falar, quero deixar claro que óbvio que todos estamos sujeitos a falhas, errar é humano e tudo mais, nem por isso devemos deixar de nos analisar, principalmente quando se trata de discursos feministas (entre outras lutas) a questão é mais delicada.

Sabemos (ou acho que sabemos) que a luta feminista vai contra uma construção da ideologia machista que perdura por séculos e séculos. São frases, piadas e pensamentos que crescemos, homens e mulheres acostumados a ouvir e achar normal, a pensar ser "assim mesmo" e a reproduzir constantemente. Kim não ficou imune a isso.

Na sua auto-biografia, Kim fala que cresceu na sombra do irmão e como mulher sempre se viu muito submissa à figura masculina. Mesmo sendo líder de uma banda de rock e tendo que enfrentar todo o machismo silencioso - e sobre isso ela fala muito bem - do meio, em suas lembranças notamos que essa convivência com o irmão e o fato de ter crescido sob constante constrangimento dessa figura masculina - sem maior apoio feminino - parece ter ajudado a Kim se tornar tão antipática a algumas figuras femininas que ela relata ao longo do livro

Kim fala muito abertamente o quanto detesta Courtney Love, viúva de Kurt, acusada por uma legião de fãs de ter "matado" o ídolo grunge dos anos 90. Na visão de Kim, Courtney entrou na vida do Kurt para acabar com ele, etc etc, em outros momentos ela sempre está relatando com maus olhos o fato de Courtney ter corrido atrás de alavancar sua carreira, para Kim, o fato de Love ser uma mulher atraente e de iniciativa, aquelas que chegam e todos olham, sabe? não parece uma combinação interessante e ela leva isso tudo de forma negativa.

Interpretei ao longo do livro que as mulheres "legais" para Kim, são as submissas, as que sofrem, as coitadas e que passam mais despercebidas. As que tentam se impor não parecem tão legais.

Quem se interessa por Courtney, como eu, sabe que ela é conhecida por ser uma figura polêmica, dizer o que quer, fazer barraco além de não ter a menor vergonha de mostrar sua sensualidade juntamente com o ar rockstar. Kim fala disso como se fosse uma forma de Courtney querer sempre se aproveitar das pessoas e em nenhum momento parece considerar que Kurt já tinha uma personalidade depressiva antes de Courtney. Ela reproduz a ideia de uma mulher ter que salvar um homem, ou a mulher que destruiu a vida do homem pobre coitado, sem considerar também qual a condição mental dos dois antes disso ou se Kurt também não destruiu Courtney igualmente... ela parece estar sempre sendo compreensiva com os homens e somente com eles.

Sobre seu próprio relato do fim de seu casamento com Thurston Moore, também foi pra mim uma grande decepção. Thurston traiu Kim, ela rasga o véu do segredo quanto a isso e vai contando como se deteriorou o casamento que era exemplo de amor e companheirismo para os fãs da banda. Porém Kim fala de uma visãoo novamente compassiva com Thurston; ela se refere a amante como "a mulher" o tempo todo e simplesmente "faz a caveira" dela. Pra não virar muito comentarista de programa sobre vida de famoso, não quero me ater a falar o que é culpa de quem em traição. Mas esse detalhe me incomodou bastante, Kim chega a dizer que "a mulher" transformou Thurston em um mentiroso e mais a frente fala ter compaixão dele por ele ter pedido a família.



O feminismo está ai pra gente lutar contra esses pensamentos de senso comum que são passados de geração a geração, pra gente repensar esse lugar da mulher e esse lugar do homem, sempre protegido por essa sociedade machista de qualquer culpa que ele possa ter.

Essa não é a melhor resenha do livro que você possa esperar, nem eu queria falar do livro em si. Mas colocar esse incomodo às claras, porque tem muito marketing em cima de "livro feminista" que tá cheio desses detalhes passando despercebido.

Tento entender porque Kim escolheu essa visão pra colocar em seu livro (porque ela quis, óbvio). Meu incômodo é em resumo por essas passagens se tratarem da repetição de um padrão de pensamento que coloca a mulher vilã versus homem frágil e manipulado.

No entanto, vejo também que Kim decidiu por uma escrita brava, sem maquiagem, vindo de dentro e colocando toda sua fúria nas palavras, os sentimentos todos misturados, a angústia, a mágoa (como sua música, e a isso eu dou uma salva de palmas).



Vejo uma mulher tentando achar explicação, e talvez preferindo acreditar no que é mais fácil: na culpa de uma terceira pessoa, de fora, que ela não conhecia e então podia julgar a vontade. É muito mais difícil admitir que o homem que foi seu companheiro por décadas revelou falhas que você não imaginava. Isso eu falo também de mim, me vi em Kim Gordon, mas me vi querendo ser diferente. As histórias de traição masculina sempre beneficiaram os homens fazendo as mulheres se odiarem e competirem entre si.
É nesse ponto que devemos escolher o caminho mais difícil mesmo.

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