23.10.13

Sobre gatos e cigarros


Chegamos então encharcadas, os nossos sentimentos desesperados haviam entrado em sintonia com o tempo e o céu resolveu me dar seu singular "seja bem vinda". Provavelmente era possível perceber através dos nossos olhos alguns sinais do que pensamos ser o amargo da juventude e a curva dos lábios que se moldavam em risos e sorrisos debaixo de toda aquela água, pois com toda nossa sabedoria juvenil sabíamos que era tudo que se podia fazer. 

Mas antes disso pensamos em fazer um filme, e antes disso nos perdemos pelas ruas sujas e demos voltas e voltas no mesmo lugar. O que não pude deixar de pensar com um tom um tanto cafona, de má escritora comum e previsível que sou, de ser tudo isso uma métafora dos nossos corações, dois descendentes de Orlando, instáveis, ou tentando para sempre sair da redoma. Mas se tivéssemos planejado, nada teria se encaixado tão bem com o culminar da noite. Sobre gatos e cigarros. Sobre um utópico clube. Sobre sermos mulheres, ou meninas, ou sobre apenas sermos - com toda, na verdade, - simplicidade que isso podia significar. Não, não sou complexa, ela disse. Não éramos de forma alguma.

Eu tenho essa estranha habilidade de me sentir totalmente a vontade em algumas casas que nunca visitei, quando assim reconheço imediatamente o lugar como sendo um velho destino de tempos em tempos. Ali era estranhamente familiar e acolhedor. Acho que poderia dançar pela casa inteira e deitar no chão, algo que só faço na minha. Além do mais, tenho uma simpatia instantânea em lugares que posso andar descalça, sentir nos pés cada pedaço do lugar.

E estávamos ali, cada uma com suas histórias de nossos curtos 20 e poucos anos. Agora sempre penso quantas pessoas no mundo todo estão vivendo a mesma coisa que eu, ou já viveram ou vão viver. Às vezes a vida parece ser incrível e fantástica, às vezes. Eu estava no meio de algo que não sabia como tinha entrado, nem como tinha terminado e com um vago pensamento do que poderia me acontecer agora. Estava na verdade absorvendo instintivamente tudo ao meu redor. Eu era mais um balão no meio de uma ventania. 

Eu havia ido para todas as direções erradas, mas também não sabia se queria tomar os caminhos certos. Talvez, um coração instável como o meu nunca saberá escolher a trilha certa, porque ingenuamente acredita que deve seguir o que sente e nada mais, sendo isso certo ou errado, Porque escolher o caminho certo é uma atitude racional, e meu coração é espaçoso e quer tomar conta de mim por inteira. Se o caminho certo não for o que o coração quer, ele vai ficar latejando e se debatendo. Até que tomba, cai e se levanta de novo. O caminho certo limita as outras possibilidades. E o coração de Orlando quis viver por séculos e séculos e viver todas as suas mudanças. 



15.10.13

Vai pra um convento, Ofélia!






Ofélia: meu responsável senhor, sabeis perfeitamente bem que sim e acompanhando vossas dádivas com frases de tão doce alento que muito mais preciosas se tomavam. Perdido o perfume que possuíam, recebei-as novamente, porque para um nobre coração, os mais ricos presentes tornam-se pobres quando aquele que oferece o presente já não mais demonstra afeto. Ei-los aqui, meu senhor! 

Hamlet – ah, ah! És honesta? 

Ofélia – Meu senhor! 

Hamlet – E bela? 

Ofélia – que quer Vossa Alteza dizer? 

Hamlet – Que se fores honesta e bela, tua honestidade não deveria permitir nenhuma homenagem a tua beleza. 

Ofélia – meu senhor, com quem a beleza poderia manter melhor comércio a não ser com a honestidade? 

Hamlet – sim, é verdade. Porque o poder da beleza transformará a honestidade em alcoviteira, muito antes que a força da honestidade transforme a beleza à sua imagem. Outrora, isto era um paradoxo, mas agora o tempo mostra que é coisa certa. Amei-te antes... 

Ofélia – foi, na verdade, meu senhor, o que me fizeste acreditar. 

Hamlet – não deverias ter acreditado em mim, pois a virtude não pode ser inoculada em nosso velho tronco sem que nos fique algum mau ressalto. Eu não te amava

Ofélia – tanto maior foi minha decepção. 

Hamlet – entra para um convento. Por que desejas ser mãe de pecadores? Quanto a mim, sou relativamente honesto e, contudo, de tais coisas poderias acusar-me, que melhor seria que minha mãe não me tivesse posto neste mundo. Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los, fantasia para dar-lhes forma ou tempo para executá-los. Por que hão de existir pessoas como eu para se arrastarem entre o céu e a terra? Todos nós somos consumados canalhas; não te fies em nenhum de nós. Segue teu caminho para o convento. Onde está seu pai? 

Ofélia – em casa, meu senhor. 

Hamlet – fecha bem as portas, para que somente em casa represente ele o papel de bobo. Adeus! 

Ofélia – ó céus clementes, ajudai-o! 

Hamlet – se te casares, eu te darei esta maldição como dote; mesmo que fores tão casta quanto o gelo, tão pura quanto a neve, não escaparás da calúnia. 
Vai para um convento, vai! Adeus! E se fazes absolutamente questão de casar-te, casa-te com um tolo; porque os homens avisados sabem muito bem que classe de monstros fazeis deles, vós, mulheres. Para um convento, vai! E o mais depressa possível! Adeus! 

Ofélia – ó poderes celestiais, restitui-lhe a razão! 

Hamlet – disseram-me, também, que fazeis uso de pinturas. Deus vos concedeu uma face e fabricais uma outra. Andais dançando, sois afetada, falais ciciando e dais apelido às criaturas de Deus, fazendo passar vossa leviandade por candidez. Vai-te, estou farto disso; foi por causa disso que fiquei louco! Posso dizer-te que não mais teremos casamentos. Viverão, exceto um, todos aqueles que já estejam casados. Os outros ficarão como estão. Para o convento, vai-te! (sai) 

Ofélia- Oh! Como é triste que um nobre espírito fique assim transtornado! A penetração do cortesão, a língua do estudioso, a espada do soldado, a esperança e a flor deste belo país, o espelho da moda, o molde da elegância, o alvo de todos os olhares, perdido, completamente perdido! E eu, a mais desgraçada e infeliz das mulheres que sugou o mel de suas doces promessas, tenho que contemplar agora aquele nobre e soberano entendimento, como harmoniosas campainhas fendidas, fora de tom a estrídulas e aquelas formas e feições incomparáveis de florida juventude, murchas pelo delírio. Oh! Como sou desgraçada! Ter visto o que vi e ver agora o que vejo!

13.10.13

Bound to lose, bound to win



"Canções sobre depravados contrabandistas de álcool, mães que afogavam os próprios filhos, Cadillacs que faziam apenas cinco quilômetros por litro, enchentes, protestos sindicalistas, trevas e cadáveres no fundo de rios não eram para os amantes do rádio. Não havia nada de condescendente nas canções folk que eu cantava. Elas não era amistosas nem plenas de bravura. Não desciam redondo. Acho que se poderia dizer que não eram comerciais. Não era só isso, meu estilo era errático e pesado demais para caber no rádio, e, pra mim as canções eram mais importantes do que um simples entretenimento ligeiro. Eram minhas preceptoras e guias para um estado alterado de consciência da realidade, uma república diferente, uma república livre. (pag. 45)

Resenha: Seja homem (JJ Bola - Editora Dublinense)

Seja Homem é um livro que busca analisar a construção da masculinidade no patriarcado, discutindo como as práticas do que seria “ser um home...