15.4.16

Um livro que anda por ai



            Acho que era uma ressaca literária, como diziam por ai. Numa tarde eu constatei alguns sintomas internos, não lembro como começou, mas sentia uma inquietação mental, uma agonia, uma coisa sem sossego, não conseguia me concentrar em uma frase, nem sentia muita vontade de continuar. É tão pior quando a coisa é de dentro, não é? Como que se explica? Eu sempre pensei: ainda bem que existe a poesia. Como tábua de salvação, igual aquela poetisa polonesa Wislawa me disse em janeiro. Esse foi um mês bom de leitura, fevereiro também, ai em março já foi ficando ruim, entrou abril e ainda esse carro não saia da lama. Que lama era essa? Que tava acontecendo em mim que não conseguia me mover por dentro? E antes eu sabia que podia correr para eles, os livros. Eles vão me salvar disso, eles precisam me salvar disso, eu pensava. Ah os livros, meu refúgio, como tantas personagens de outros livros, de seriados estadunidenses, de filmes... eu me enfiava inteira em um livro quando ele me puxava, e alguns sugam, e nos levam a profundezas de mares desconhecidos, às vezes a gente nem volta.
               Um livro não é só um objeto, um livro é um corpo, entende? Infelizmente, (ou felizmente?), não acredito mais na separação de alma e corpo, talvez isso signifique que não acredite em vida pós-morte, céu/inferno, a não ser que vá tudo junto de alguma forma, mas ai é outra coisa e eu estou tentando escrever uma crônica. Continuando, livro é corpo, é um corpo que nos comunica, que nos abraça, que a gente cheira, que a gente espirra às vezes, (os adeptos aos eletrônicos não precisam se preocupar com isso), que tocamos, que a gente até beija, um amigo uma vez escreveu um conto sobre uma mulher que fazia ainda muito mais com o livro... mas particularidades sexuais a parte, o livro é um corpo. Pois se fosse só um objeto a relação seria só unilateral, nós humanos animados poderíamos manipular o livro e fazer o que bem entender dele. Sendo um corpo o livro tem vontades e eu queria que ele nunca tivesse me deixado, mas ele era alguém, alguém que anda por ai.
               E foi assim que eu “perdi” um pouco de Cortázar da minha estante. Eu tenho um Cortázar a menos agora. Eu tenho um alívio a menos. Eu tenho uma tábua a menos. Eu tenho... tenho.. eu tinha... ter... por que lamentar? Logo eu que estou nesse processo de descoisificar as coisas, logo eu que já não sentia mais tanta falta de ter livros, às vezes parece que você só quer ter pela coisficação, pelo possuir, porque sempre os acumulo. E agora vendo esses 30 livros acumulados na minha estante tenho uma imagem horrenda, parecem trinta corpos mortos na minha estante. Eu preciso ler os livros da minha estante. Eu preciso parar de fazer essas pilhas de não-lidos. Eu preciso ler os livros da minha estante. Livro é corpo e precisa de vida, ser lido, devorado, é comendo-os que nós damos vida a eles.
           Eu havia começado a comê-lo de pouquinho, mas sabia que ele iria ser a cura da minha ressaca, eram alguns contos e eu só havia lido o primeiro quando Ele se foi. Eu o perdi, num dia eu sai de casa, o coloquei na bolsa com a certeza que eu teria muito tempo com ele, pois seria um dia de muitas esperas, e ele estaria comigo. Encontrei uma poltrona confortável no meio de um shopping barulhento e já pensei “vou abrir meu livro aqui e esquecer de tudo que está me perturbando até que eu tenha que pensar nisso novamente.” Nesse dia o shopping estava todo decorado com árvores com livros pendurados e achei lindo! Livro-corpo-semente-fruto-comer. Mas quando abri a bolsa, nada, nada. A bolsa cheia de papéis e dinheiro, dinheiro que eu havia acabado de conseguir vendendo outro livro, a bolsa parecia vazia. Todo leitor deve sentir também que sua bolsa está vazia sem um livro. O Nome dele é Alguém que anda por aí. E de repente durante uma música pop que eu dançava sozinha no meu quarto eu obtive a resposta para isso tudo. Se eu amo tantos os livros porque eu acho que os possuo? Por que não deixá-los livres? Como em francês, livro é livre. O livro-alguém foi andar por aí. Se perguntarem por mim, diz que fui por aí, a voz da Nara Leão cantou aqui na mente. E eu só espero que ele esteja bem.



Resenha: Seja homem (JJ Bola - Editora Dublinense)

Seja Homem é um livro que busca analisar a construção da masculinidade no patriarcado, discutindo como as práticas do que seria “ser um home...