19.4.16
15.4.16
Um livro que anda por ai
Acho que era uma ressaca literária,
como diziam por ai. Numa tarde eu constatei alguns sintomas internos, não
lembro como começou, mas sentia uma inquietação mental, uma agonia, uma coisa
sem sossego, não conseguia me concentrar em uma frase, nem sentia muita vontade
de continuar. É tão pior quando a coisa é de dentro, não é? Como que se explica? Eu
sempre pensei: ainda bem que existe a poesia. Como tábua de salvação, igual aquela
poetisa polonesa Wislawa me disse em janeiro. Esse foi um mês bom de leitura, fevereiro
também, ai em março já foi ficando ruim, entrou abril e ainda esse carro não
saia da lama. Que lama era essa? Que tava acontecendo em mim que não conseguia
me mover por dentro? E antes eu sabia que podia correr para eles, os livros. Eles
vão me salvar disso, eles precisam me salvar disso, eu pensava. Ah os livros,
meu refúgio, como tantas personagens de outros livros, de seriados
estadunidenses, de filmes... eu me enfiava inteira em um livro quando ele me
puxava, e alguns sugam, e nos levam a profundezas de mares desconhecidos, às
vezes a gente nem volta.
Um livro não é só um objeto, um
livro é um corpo, entende? Infelizmente, (ou felizmente?), não acredito mais na
separação de alma e corpo, talvez isso signifique que não acredite em vida
pós-morte, céu/inferno, a não ser que vá tudo junto de alguma forma, mas ai é
outra coisa e eu estou tentando escrever uma crônica. Continuando, livro é
corpo, é um corpo que nos comunica, que nos abraça, que a gente cheira, que a
gente espirra às vezes, (os adeptos aos eletrônicos não precisam se preocupar
com isso), que tocamos, que a gente até beija, um amigo uma vez escreveu um
conto sobre uma mulher que fazia ainda muito mais com o livro... mas
particularidades sexuais a parte, o livro é um corpo. Pois se fosse só um
objeto a relação seria só unilateral, nós humanos animados poderíamos manipular
o livro e fazer o que bem entender dele. Sendo um corpo o livro tem vontades e
eu queria que ele nunca tivesse me deixado, mas ele era alguém, alguém que anda
por ai.
E foi assim que eu “perdi” um pouco
de Cortázar da minha estante. Eu tenho um Cortázar a menos agora. Eu tenho um
alívio a menos. Eu tenho uma tábua a menos. Eu tenho... tenho.. eu tinha...
ter... por que lamentar? Logo eu que estou nesse processo de descoisificar as
coisas, logo eu que já não sentia mais tanta falta de ter livros, às vezes
parece que você só quer ter pela coisficação, pelo possuir, porque sempre os
acumulo. E agora vendo esses 30 livros acumulados na minha estante tenho uma
imagem horrenda, parecem trinta corpos mortos na minha estante. Eu preciso ler
os livros da minha estante. Eu preciso parar de fazer essas pilhas de
não-lidos. Eu preciso ler os livros da minha estante. Livro é corpo e precisa
de vida, ser lido, devorado, é comendo-os que nós damos vida a eles.
Eu havia começado a comê-lo de
pouquinho, mas sabia que ele iria ser a cura da minha ressaca, eram alguns
contos e eu só havia lido o primeiro quando Ele se foi. Eu o perdi, num dia eu
sai de casa, o coloquei na bolsa com a certeza que eu teria muito tempo com ele,
pois seria um dia de muitas esperas, e ele estaria comigo. Encontrei uma
poltrona confortável no meio de um shopping barulhento e já pensei “vou abrir
meu livro aqui e esquecer de tudo que está me perturbando até que eu tenha que
pensar nisso novamente.” Nesse dia o shopping estava todo decorado com árvores
com livros pendurados e achei lindo! Livro-corpo-semente-fruto-comer. Mas
quando abri a bolsa, nada, nada. A bolsa cheia de papéis e dinheiro, dinheiro
que eu havia acabado de conseguir vendendo outro livro, a bolsa parecia vazia.
Todo leitor deve sentir também que sua bolsa está vazia sem um livro. O Nome dele
é Alguém que anda por aí. E de repente durante uma música pop que eu dançava
sozinha no meu quarto eu obtive a resposta para isso tudo. Se eu amo tantos os
livros porque eu acho que os possuo? Por que não deixá-los livres? Como em
francês, livro é livre. O
livro-alguém foi andar por aí. Se
perguntarem por mim, diz que fui por aí, a voz da Nara Leão cantou aqui na
mente. E eu só espero que ele esteja
bem.
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