22.3.18

[Impressão] Primeiras histórias: a mulher submissa em busca de liberdade nos primeiros contos de Clarice Lispector



Aqui analisarei alguns dos primeiros contos de Clarice Lispector, contidos em “Primeiras Histórias”, Os contos foram lidos em Fevereiro no projeto de leitura conjunta para ler dois contos por semana do livro “Todos os Contos”, publicado em 2016 pela Rocco.

Foi muito interessante ter contato com a fase inicial de Clarice e já poder perceber algumas características da sua escrita ganhando forma, se desenvolvendo, e se modificando também. A primeira característica que o leitor de Clarice nota é a presença maciça de protagonistas mulheres nos contos. Desde o inicio Clarice procurou narrar os fatos pela perspectiva feminina, visto que era algo raramente explorado na literatura em sua época. Outra forte marca é o fluxo de consciência, é lindo ver Clarice se experimentando e explorando esse recurso sem medo de ser feliz. Nas discussões no grupo virtual da leitura coletiva tivemos sim dificuldade em entender alguns contos, em especial “Delírio” e “Mais dois bêbados”, mas ao mesmo tempo no foi muito empolgante embarcar na viagem que Clarice nos propôs, criar interpretações e variadas análises. Outro fato curioso é que nesses dois contos, temos personagens masculinos, para mim uma novidade na obra de Lispector. “Delírio” parece ser uma narrativa conduzida pela febre do personagem, um escritor (??), ou ela própria (?), sempre temos a sensação de que Clarice fala dela mesma em alguma parte de todos esses contos. “Mais dois bêbados”, trata-se de um diálogo nosense entre dois homens num bar, ou na verdade um monólogo, de um embriagado com suas angustias numa mesa de bar, algumas pessoas no grupo disseram que não entenderam nada, o que interpretei foi: “ficar bêbado num bar falando sozinho, quem nunca?”.



Porém, o que mais quero atentar aqui é para uma possível linha de evolução que parece haver na organização dos contos, em se tratando da libertação e empoderamento da mulher que Clarice esboça nessas primeiras histórias. Em “Triunfo”, primeiro conto, a personagem acorda sozinha em casa e começa a reviver a discussão que teve com o marido. Clarice mostra uma mulher no que poderíamos chamar hoje de “relacionamento abusivo”, com forte manipulação psicológica, quando acho que ninguém tratava disso na época. “Ela, calada, defronte dele. Ele, o intelectual fino e superior, vociferando, acusando-a, apontando-a com o dedo. E aquela sensação já experimentada das outras vezes que brigavam: se ele for embora, eu morro, eu morro”. Mesmo depois de lembrar vários momentos como esse, a personagem permanece presa ao relacionamento, desejando a volta do marido. É até estranho resumir Clarice numa narrativa, com começo meio e fim, mesmo sabendo como o conto, ler as palavras que ela escolhe, o modo como ela traça esse percurso psicológico é que nos prende de fato.


Em “Obsessão”, “Eu e Jimmy”, “História Interrompida”, “Fuga”, o enredo se repete um pouco. As relações entre os homens e as mulheres – protagonistas. São bem parecidas. A mulher é retratada geralmente como alguém muito dependente do homem, burguesa, casada e presa. Presa a sua situação (me lembrei muito de Simone de Beauvoir), presa ao seu estado civil, presa em si mesma. O homem é colocado como superior, porém não é que Clarice o ache superior, a personagem no fundo tem consciência que ele se acha muito superior e por toda a situação de como a sociedade enxerga a mulher, ela também se diminui. Os homens são intelectuais, e estão sempre explicando o mundo para as mulheres. Algumas se deslumbram com aquela sabedoria, outras se deixam levar sabendo que estão se deixando levar. O conto por vezes se inicia com o encontro com esses homens que fazem as personagens muitas vezes se entenderem como um ser humano de fato, como se até então tivessem vivido sem se dar conta que viviam.  Acho que Clarice coloca tudo isso com uma toque de ironia, porém nenhuma delas se liberta de fato dessas amarras. Até chegarmos em “Gertrudes pede um conselho”; com esse conto, todo o acumulo de angustia que eu senti em todas as mulheres anteriores se dissiparam, e Clarice mostra pela primeira vez uma mulher livre. Nesse, a relação de dependência não é com um homem, mas com uma psicóloga, em que Gertrudes vai pedir conselho sobre a angustia que sente de vida. Daí, já vemos o momento de crise que as personagens de Clarice geralmente enfrentam, quando a vida comum já não basta, já não se sabe passar um dia depois do outro, como diz outra personagem do romance As Ondas de Virginia Woolf: “Vim perguntar o que faço de mim. Mas não sabia resumir seu estado nessa pergunta. Além disso, receava cometer uma excentricidade e ainda não se habituara consigo mesma”. Incompreendida, Gertrudes deixa o consultório e finaliza
“- Eu lá preciso de doutora! Lá preciso de ninguém”. Continuou a andar, apressada, palpitante, feroz de alegria”




Não sei como se deu a organização dos contos, mas é magistral o desenvolvimento que Clarice coloca acerca da situação da mulher. Tanto em como os outros a veem, ela fala também da educação que a mulher recebe e como ninguém no coloca dentro do que se passa na mente das personagens diante do que sofre. Não acredito que Clarice queira dar a ideia de uma “mente feminina”, não é sobre “feminino” que ela fala, mas nos bota a par da “mente da mulher” dentro de uma situação que uma construção social. E mais do que nunca Clarice me ajuda a ter certeza que “Não se nasce mulher, torna-se”.

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